Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2010.
Na corda bamba
Quando, já no terço final de O Último Mestre do Ar, Aang, o Avatar (Noah Ringer), tem lições sobre a dominação da água, seu mestre discorre longamente para os alunos a respeito do poder simbólico daquele elemento. M. Night Shyamalan filma de maneira solene esse extrato trivial do mundo, como os momentos de fé devem sempre ser filmados – os atos religiosos, as performances musicais, as cenas de luta – quando se quer conservar intacto seu sentido original. De fato há, nesta cena, um forte grifo metalinguístico, neste que é provavelmente o mais metalinguístico entre os filmes de Shyamalan: para penetrar em seu cinema, é preciso estar sempre atento ao fato de que estamos a lidar com símbolos, que carregam consigo uma série de significados.
O Último Mestre do Ar é, nesse sentido, o filme mais didático de toda a carreira do diretor. A decomposição do mundo em quatro elementos básicos torna as “regras do jogo” absolutamente claras. Não há segredo a ser desvendado – e aqui não estou a engrossar a triste ladainha dos “finais surpresa”. Embora diversos de seus filmes anteriores primem por sentidos que repousam logo abaixo da superfície, O Último Mestre do Ar vem afirmar que camuflar os símbolos era mais uma decorrência natural das estórias que Shyamalan decidia contar do que, com efeito, o fim secreto de sua arte. Seu interesse fica mais claro neste inevitável espelhamento com o próprio filme: compreender o significado dos símbolos para, então, dobrá-los (o verbo “to bend” que vem no título, e que é traduzido ao longo do filme como “dominar”), articulando esses significados com intenções alegóricas que só encontramos com igual intensidade no cinema contemporâneo nos filmes de Tsai Ming-liang. A água nunca é tão somente água.
Afinal, estamos a falar de um filme de ação onde ninguém parece se machucar, e onde um jato de fogo no rosto não deixa marcas para além de um breve desmaio. O campo de batalha é a clareira ideal para o simbólico, e Shyamalan acentua essa vocação com cenas de “pancadaria” que não trazem qualquer resíduo de violência. Os golpes são inscritos na duração, em belas dinâmicas de planos-sequência, e a adoção – nada irônica – do super slow à Zack Snyder vem como uma correção de efeitos. Pois em Watchmen (2009), esse recurso servia para congelar o ápice da violência, distendendo o impacto do golpe em uma mal ajambrada glorificação. A ironia do procedimento mal usado foi desmascarada em praça pública por Sylvester Stallone em seu Os Mercenários (2010): retirar o que há de abrupto no ato violento é, na verdade, neutralizar qualquer traço de violência. Shyamalan usa o mesmo recurso, decidido a mostrar que uma coisa não serve ao seu contrário: seu super slow marcará os golpes não dados, as esquivas, a possibilidade de vencer uma batalha épica sem causar um arranhão.
Esse respeito inalienável à articulação dos significados é a característica mais marcante do trabalho de Shyamalan, e a que garante ao seu cinema um lugar de destaque no atual panorama cinematográfico. Pois assim como o diretor se atenta ao simbólico do que filma, ele também deposita uma enorme fé na carga simbólica de como filma. É isso que faz com que seus filmes sejam algo além do que uma simples reação à indeterminação da arte pós-utópica, pois cada travelling carrega o peso de suas consequências, e cada primeiro plano – recurso que, em O Último Mestre do Ar, ganha uma força inédita em sua carreira – parece capaz de esconder (e revelar) todo um mundo.
Por outro lado, a água também nunca pode ser fogo. Daí, talvez, surja o estranhamento maior diante de O Último Mestre do Ar, que é também sua maior virtude. Pois se, por um lado, há procedimentos extremamente corriqueiros das mais atuais encarnações do gênero de super-heróis (gênero primordial para os filmes de Shyamalan), esses procedimentos têm o sentido deformado por essa ambição alegórica que entorta tudo que vê, mas que, ao mesmo tempo, precisa respeitar o sentido original dos elementos. Temos, com isso, uma ação que conjuga integralmente “forma” e “matéria”, onde a escrita da câmera – o “como” – é tão importante quanto o mundo diante dela – o “o que”.
É com isso que O Último Mestre do Ar deixa de ser um filme protocolar para levantar uma franquia de super-heróis, e se torna parte integrante de uma obra ainda em progresso, com os pés clara e fortemente fincados no universo de um autor que afirma seus valores à medida que os reiventa. Se não temos, aqui, o mesmo impacto de Sinais (2002) ou A Vila (2004), é muito por O Último Mestre do Ar ser um filme que confirma expectativas. Shyamalan, que sempre dobrou as convenções do cinema de gênero a interesses muito particulares, dessa vez parece precisar travar o seu olhar para atingir um público que possa garantir a realização dos próximos episódios da série – e não há exemplo maior disso do que o filme, sendo um filme de Shyamalan, não ter exatamente um final. A impossibilidade de desestabilização do espectador crítico é, porém, compensada pela habilidade do manejo das formas e sentidos, e por uma vontade de leveza um tanto inédita para um cinema de vocação messiânica. Em O Último Mestre do Ar, M. Night Shyamalan transforma o peso dessa responsabilidade em pura jouissance.
Em época que a politique des auteurs segue arrastando o pé com feridas abertas e tripas à mostra, é inevitável que a busca de palavras como “universo” e “obra”, e menções indiretas à camera-stylo de Astruc façam soar uma série de alertas. O caso de M. Night Shyamalan exige que algumas questões sejam colocadas em perspectiva. Em primeiro lugar, o “auterismo” que parece mais cabível aqui não é o professado por Truffaut e cia nos Cahiers, mas sim a versão à americana importada por Andrew Sarris e melhor condensada na introdução e no método de The American Cinema.
No gesto de Sarris, a valorização do auteur cinematográfico tinha a intenção política de garantir a sobrevivência da arte em um mundo assumidamente comercial (Hollywood), entortada até mesmo pela academia a leituras (sociológicas, psicanalíticas, semiológicas – todas elas privilegiando o “o que” ou o “como”, como se eles fossem entidades separadas) supostamente sérias que aniquilavam o caráter artístico dos filmes. Além disso, se à época a política era uma reação à indústria que forçava Ford, Welles, Renoir, Lang e mesmo Chaplin à intermitência – quando não à aposentadoria -, hoje temos diretores como Brian de Palma e David Lynch praticamente banidos de Hollywood, trabalhando primariamente e a duras penas com dinheiro estrangeiro. O gesto político de Sarris – muito mais lúcido de suas limitações e potências do que o clube dos Cahiers – não perdeu validade.
Mas por outro lado – esse sim mais importante – Shyamalan é um desses casos em que a idéia de auteur ajuda a compreender em termos artísticos e históricos. Pois a política dos auteurs é tão somente uma proposta de abordagem/escritura histórica para a arte do cinema, que precisa ser aplicada com alguma flexibilidade. Shyamalan constrói sua obra propondo esse modo de leitura (podemos dizer o mesmo de Hong Sang-soo, ou novamente de Tsai Ming-liang), trabalhando cada filme com uma aguda percepção de “corpo de obra”, relacionando cada passo do presente à história de uma única trajetória. Há os filmes, individualmente, mas há também a nítida sensação de um trabalho maior em curso, do qual os filmes são apenas pequenos e essenciais passos. A proposta histórica do auteur é justamente a de reconhecer essa rara intenção – que, no caso, é propositiva, e não retroativa, como na época de Sarris e na leitura moderna de diretores como Clint Eastwood, onde o auterismo indiscriminado deixa de ser meio e se torna fim, evidente na condescendência generalizada às fragilidades de um Invictus e à auto-celebração de Gran Torino – e conservar os filmes dentro desse corpus, percebendo a importância dos passos em falso dentro de uma trajetória.
O Último Mestre do Ar – filme sem dúvida menor dentro de uma carreira até então impecável – interessa não só pelos seus acertos, mas também por o que seus erros (ou os momentos que transparecem um automatismo na direção) deixam transparecer. Pois se, tomando as palavras de Sarris, os diretores “não mereceriam maior atenção, não fosse o fato de, quando em vez, eles extraírem miraculosamente o sublime de um ambiente guiado pela necessidade de se fazer dinheiro”, Shyamalan se torna um dos casos mais fascinantes entre os artistas que, se equilibrando na corda bamba da indústria, pedem sempre cordas mais finas, e penduram mais pesos de um lado que de outro, testando obstinadamente até onde ele pode resistir ao desequilíbrio que ele mesmo provoca.