Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2010.
Cinema do possível
Em um dos seus textos mais interessantes, o semiólogo e teórico de cinema Christian Metz dava à forma de 8 ½ (1963), de Fellini, o nome de “construção em abismo”. A nomenclatura era emprestada do universo dos brasões (no qual “abismo”; é simplesmente o centro, mas que traz um bem vindo subtexto vertiginoso ao filme), e fazia referência aos escudos que traziam um desenho de um outro escudo igual a ele em seu centro, que por sua trazia outro escudo igual a ele em seu centro, e assim sucessivamente. Segundo Metz, 8 ½ realiza essa construção em abismo, na qual o filme não-realizável (o filme dentro do filme) acabava por ser o filme, de fato. É como se um espelho refletisse um espelho, que refletisse outro espelho, e assim sucessivamente. Riscado, longa de estréia de Gustavo Pizzi, tem intenções igualmente ambiciosas. Acompanhamos a estória de Bianca (Karine Teles), uma atriz que trabalha com eventos para conseguir se sustentar. Em dado momento, ela faz um teste para um filme e é convidada para protagonizá-lo. O diretor se encanta com sua estória de vida, e resolve trazê-la para dentro do filme. Riscado é o filme da vida de Bianca – logo, poderia ser também este filme dentro do filme, que se inspiraria em sua biografia. O brasão é enfeitado por outro brasão, e dentro dele há mais outro: não se sabe mais onde esse jogo começa ou termina, pois todas as camadas se completam em uma só.
Há, nessa própria estrutura, uma curiosidade primeira inevitável. Em primeiro lugar por essa atenção formal ser bastante rara no panorama nacional de hoje e de qualquer época. Enquanto a maior parte da tradição do cinema brasileiro confia ou na intuição artística ou na impressão de uma emoção do mundo (façamos exceção aqui a casos com o de Júlio Bressane, e o Santiago de João Moreira Salles), Riscado tem esse interesse raro pelo encaixe das peças, que ainda tem a virtude de nunca se sobrepor à construção de cada uma dessas peças, de fato. Ao contrário, há uma dedicação louvável à escritura das cenas, à maneira como cada ator (quase todos em momento bastante especial) se portará dentro dela, à combinação de fatores que melhor expressará formalmente o que a cena tem como coração. Riscado é um filme agradabilíssimo de se assistir simplesmente por ter uma estória interessante e bem desenvolvida; por nos dar a conhecer uma personagem por quem sentiremos empatia e que gostaremos de acompanhar até o final; por levantar situações e deixá-las suspensas por um instante, até que o desenrolar do filme volte a cada uma delas para lhes dar finalidade. Além disso, é um filme de momentos visuais bastante memoráveis, quando não realmente inventivos. A estrutura é o que evita que essas fortes pulsões evaporem no ar.
Essa estrutura, porém, não impedirá que as pulsões se manifestem em toda sua integridade. Riscado é um caleidoscópio de formatos de tela, um patchwork de bitolas e materiais diferentes que, mesmo quando justificável (não é descabido interpretar o choque das poucas imagens feitas em película no filme como vindas de uma outra instância narrativa – é a câmera que foge da estrutura e que torna mais complexo esse baile de espelhos), é legítimo simplesmente porque parece de fato mover seu diretor. Embora se engendre perfeitamente no rigor da estrutura, esses momentos funcionam também como licença poética, como se a estrutura permitisse ao diretor fazer o que simplesmente lhe parece belo – e o melhor exemplo é a sequência em que Bianca contracena com Betty Page, em um número que, sozinho, reproduz a construção em abismo com um jogo de lençóis e projeções extremamente bem arquitetado; sem, com isso, tirar de vez os pés do chão.
Se, por um lado, isso confere ao filme uma firmeza bastante rara para trabalhos de estreantes, há momentos em que o gosto da encenação por vezes briga com os limites do possível. Alguns diálogos se alongam para além de sua potência por um fascínio estreante de quem parece descobrir os encantos possíveis de duas atrizes que contracenam (a conversa de Bianca com a proprietária de seu apartamento é um bom exemplo disso); a decupagem de diversas cenas parece um tanto perdida, abusando um tanto da liberdade de quebrar o eixo sem alcançar efeito significativo com essa quebra; diversos enquadramentos são claramente impostos pela possibilidade espacial da cena, colocando a câmera no lugar que permite que todos os atores caibam no quadro – dispensando, com isso, um mundo de possibilidades de mise en scéne e de blocking que poderia enriquecer muito o filme. Ainda assim, Riscado consegue lidar com suas limitações sem recorrer à exposição da precariedade, passando por elas com certa confiança e transparência que chegam intactas ao final do filme.
Mas o que parece fazer de Riscado um filme ainda mais bonito é, justamente, a maneira como ele afirma o cinema. Pois embora sua narrativa não fuja do desencanto (mesmo que gracioso), Riscado é como um grande golpe à Murnau na inevitabilidade da realidade. Pois, se em A Última Gargalhada (1925) Murnau interromperia o filme com uma cartela que expressava a compaixão do diretor pela personagem, e mudava radicalmente seu destino, aqui isso se resolve com uma simples afirmação de existência. E embora Bianca não esteja isenta da tragicidade do mundo, das contingências que a tiram do lugar de protagonista e a abandonam chorando maquiagem borrada em um meio-fio do Centro do Rio, Riscado interfere em seu favor: o filme, afinal, existe.