Publicado originalmente na Cinética em Agosto de 2010.
De volta
Aqueles que só conhecem o trabalho mais recente de Hayao Myiazaki podem ficar um tanto desorientados diante de Ponyo. Não há resquício, aqui, do acento épico de filmes como A Viagem de Chihiro (2001), A Princesa Mononoke (1997) ou mesmo do clássico Nausicaä (1984). Embora todos os seus filmes sejam marcados por uma liberdade de pensamento nada adulta, em Ponyo Miyiazaki retoma o interesse exclusivo sobre o universo infantil. Sim, Ponyo é um filme para crianças, e o é com uma dedicação exclusiva ausente em seu trabalho desde a obra-prima Meu Vizinho Totoro, de 1988.
Não deixa de ser curioso que, após duas décadas explorando o hibridismo fantástico de seus filmes mais maduros (fantástico que, em Meu Vizinho Totoro, ganhava base naturalista ao ser claramente estabelecido como fruto de imaginação de duas meninas), Myiazaki sinta a necessidade de se voltar tão direta e conscientemente às crianças novamente. Curioso pois, embora elas claramente estivessem em sua mente o tempo todo, seu status mudara com o tempo: com o sucesso mundial de A Viagem de Chihiro, Myiazaki se tornou um dos mais celebrados realizadores em atividade, fincando os pés fortemente no terreno dos festivais e no radar de interesse de qualquer cinéfilo minimamente sensível. Ponyo é um filme de correção de rota – algo ainda mais expressivo pela presença marcante do mar e do universo náutico em todo o filme – não só para o próprio Myiazaki, mas também para o que o cinema para crianças (em especial o de animação) teria se tornado.
Tal correção, em primeiro lugar, é uma questão de traço. Enquanto a animação em 3D de Pixar e cia se empenha cada vez mais no aprimoramento de sua potência mimética, Ponyo traz um Myiazaki de mão soberbamente solta. Embora o diretor seja talvez o mais famoso defensor da animação à mão em todo o mundo, seu traço sempre foi de enorme precisão. Em Ponyo, porém, os desenhos ganham uma fluidez inédita em sua obra, trocando as cores brilhantes e bem definidas de A Viagem de Chihiro por uma palidez extremamente harmônica, mais próxima de um trabalho em aquarela. O mar – se comparado ao rio em computação gráfica de A Viagem de Chihiro – ganha uma opacidade surpreendente, por vezes tornando-se de fato uma criatura viva, autônoma e una.
Essa opacidade é essencial, e é por ela que Myiazaki chega à característica central de Ponyo: profundidade. Pois há todo um jogo entre opacidade e profundidade, no filme, que não diz respeito somente à composição visual, mas também às operações de sentido que lhe interessam. O mar, mesmo que visualmente opaco e impenetrável, é de uma riqueza acachapante de tons, brilhos e formas de vida. Tudo que parece intransponível – ou, se quisermos fazer um comentário metalinguístico, tudo que existe em 2D – esconde enorme profundidade, e é justamente nessa surpresa que o cinema se faz: algo que sabemos ser duro, finito e chapado como uma parede, mas é capaz de se desdobrar em formas e dimensões que, na impecabilidade ilusionista do próprio truque, são fisicamente impossíveis. O cinema em 3D é apenas a revelação ostensiva de uma operação de falseamento que já é realizada plenamente no 2D – da qual os óculos se fazem o ápice da perversidade barroca.
É interessante que, com essas particularidades, Ponyo se revele o verdadeiro anti-Shrek – como se a obsessão da animação computadorizada com a profundidade de um nariz ou de uma barriga saliente fosse a testemunha do descaso à profundidade que realmente interessa: a do universo ficcional. Ponyo declara isso fazendo aquilo que só a animação pode fazer sem cortes: mostrar o exato momento em que um ser altera sua condição, transformando-se de peixe em menina em um único e contínuo plano. É essa a questão essencial (que, inclusive, existe também em Procurando Nemo e Ratatouille) para uma arte que realmente se quer formadora, pois ela reafirma o poder da própria arte. Enquanto diversos filmes infantis se limitam a reproduzir e transmitir para as crianças de forma indolor um status quo já estabelecido (Os Incríveis, Shrek), Ponyo indica justamente a possibilidade de cada indivíduo de transformar radicalmente sua condição, com os ganhos e sacrifícios inerentes ao processo. Para isso, basta haver algo para se amar, dedicada e incondicionalmente, do outro lado.