Publicado originalmente na Cinética em Agosto de 2010.
E O Profeta, o que é?
Há muita fumaça em torno de O Profeta, e apenas uma fração dela é produzida pelo próprio filme. Parte determinante do debate que ele motiva ressalta a necessidade de reforçar o entorno: obra de grandes questões e abordagem supostamente realista, com prêmio especial do júri no Festival de Cannes, concorrente francês aos Oscar, etc. São características que, mesmo conjunturais, mediam de forma sempre impertinente a relação com obras que idealmente deveriam ser vistas por si e que, mesmo conectadas a seu tempo e seu espaço, não se limitam a eles. Mas há, é claro, a fumaça que o próprio filme produz, e essa sim tem um efeito dispersivo que não deve ser desconsiderado. Pois, sim, O Profeta é um filme de personagens imigrantes presos na França – questão premente no engajamento atual dos humores franceses – e que instaura algum meio termo entre o realismo estrito e uma comedida estilização, se apropriando de figuras de linguagem caras tanto ao cinema de festivais quanto aos filmes de gênero norte americanos. Mas o fato de isso tudo estar lá esconde o que talvez o filme tenha de mais marcante: O Profeta não é, de fato, um filme sobre nenhuma dessas características.
O que seria O Profeta, então? Esse questionamento parece buscar algo de essencial, de evidência material nos planos e nos rolos de película, mas a resposta que parece mais honesta é de enorme volatilidade: depende de o que desejamos que ele seja. Pois, embora exista margem real no filme para provocar leituras as mais desviantes, é inevitável a sensação de que tais leituras denotam um automatismo muito maior do que o filme realmente suscita em sua construção. Jacques Audiard usa uma série de dispositivos de leituras prontas para negá-los na maneira como ele constrói a estrutura formal da obra. Em primeiro lugar, há um recorte muito delimitado: o filme começa e termina junto com o tempo que Malik (Tahar Rahim) passa encarcerado. O que vem antes e o que vem depois lhe é pouco ou nada relevante; interessa-lhe este não tão breve ínterim (5 anos em tempo ficcional; 155 minutos em tempo de projeção) e é importante que ele esteja absolutamente desconectado do passado e do presente. A personagem nasce e morre na prisão, mesmo que sua existência escorra por ambas as bordas, e o que está nas bordas escorra para dentro dela.
Essa forte deliberação é uma primeira maneira de nos aproximarmos do protagonista, que é o coração do próprio filme. A equivalência entre o tempo na prisão e a duração do filme leva a uma série de associações: são ambos universos fechados e isolados em certa medida da conjuntura exterior, nos quais adentramos com preconceitos e orientações ideológicas que nem sempre têm seu sentido preservado nos dois espaços/tempos. Malik é árabe e isso determina seu futuro: é somente por ser árabe que a quadrilha corsa se aproximará dele e o coibirá à ação. Por outro lado, a relação que este “ser árabe” lhe garante transforma todas as outras relações que ele estabelecerá na prisão, anulando a si mesmo: Malik será protegido pelos corsos e isso garantirá sua sobrevivência; em compensação, ele perde completamente sua identidade. Para os corsos, ele permanecerá o árabe; para os árabes, ele se tornara um corso.
O Malik que conhecemos, portanto, não é uma coisa nem outra. É uma personagem que tenta sobreviver ao próprio filme, modulando-se à medida que os obstáculos surgem. É necessário determinar a finitude de sua presença, pois é no presente que ele precisa sobreviver. Malik entra na cadeia “zerado”: é lá que aprende a ler e escrever, a compreender a língua-mãe daqueles que controlam sua vida, a saber a hora exata de usar essa informação para transformar sua condição, a aprender a hora de ser fiel e a hora de trair. É daí – e não do acidente que ele parece prever, já na metade final do filme – que parece surgir o título de “profeta”: para sobreviver em tela, é preciso antever cada passo, prevendo as armadilhas que o filme colocará em seu caminho, driblando cada esforço de definição e de redução da personagem. Não à toa, quando lhe perguntam se ele é o árabe que trabalha para os corsos, ele responde: trabalho apenas para mim mesmo. O que é anterior ao filme – tanto no personagem quanto no espectador – influencia o que vemos, mas para sobreviver é necessário dosar esse conhecimento prévio, tentando detectar quando ele é ferramenta, e quando se torna entrave.
O Profeta herda do cinema clássico um esqueleto narrativo que, de tão abandonado, hoje está mais associado aos video games. O desenrolar em blocos (ou em fases) do romance picaresco ganha um caráter metalinguístico, onde Jacques Audiard – metaforizado pela prisão, que é a encarnação física do conceito de “diegese” – instaura desafios que o protagonista precisa superar. Essa lógica quase utilitarista, onde os artifícios são “soluções” e chegar ao final do filme é de fato um “problema”, acaba por dar a O Profeta um clima de cinema B, no qual a força e a inventividade das soluções surgem da necessidade de revitalizar os clichês. Jacques Audiard aborda este universo sem o tom paródico de quase todos os filmes A que foram ditos B nos últimos anos (À Prova de Morte, Fim dos Tempos, O Nevoeiro, Um Drink no Inferno, Old Boy – todos eles muito mais próximos do macaqueamento cheio de segundas intenções de um Acossado, do que de um Curva do Destino); a lógica do filme e a da cadeia são a da sobrevivência a qualquer custo, e Jacques Audiard reconhecerá os riscos desse entendimento na sequência final, quando Malik sai da cadeira e é seguido por um ameaçador grupo de carros que não conseguimos identificar. Há, no filme, uma separação consciente entre o universo da ficção e o mundo real, mas o mundo real está lá, como vigia, adentrando o filme pelas pontas.
Essa prevalência da eficiência – onde vale tudo, desde que se chegue ainda mais forte na sequência seguinte – serve tanto para Malik quando para o próprio Audiard. O diretor pode, inadvertidamente, ir do naturalismo ao sobrenatural, do gore às cartelas estilizadas à Guy Ritchie sem qualquer aviso ou critério aparente, sem que possamos compreender o porquê de certos personagens merecerem o destaque das cartelas e outros, não. Embora exista, aí, um subtexto bastante sintomático da vivência contemporânea, Jacques Audiard se desvencilha do que há de mais problemático nisto submetendo a eficiência à lógica do absurdo (como no cinema de Tony Scott), pois as relações no mundo se tornaram absurdas. E é justamente por essa eficiência tão direta, que se preocupa mais em construir ritmo e envolvimento do que em discursar sobre si mesma, que O Profeta reverbera dentro de um panorama tão obcecado com seus próprios espirais, de filmes mais interessados em teorizar sobre as imagens do que em de fato produzi-las. O Profeta se torna destacável justamente pela obstinação limpa que o faz esquecível no acender das luzes.