Publicado originalmente na Cinética em Junho de 2010.
Crise de consciência
Firmando o recorte ibero-americano para a competição de filmes de longa metragem, o Cine Ceará abriu sua vigésima edição com esta adaptação do texto de Gabriel Garcia Marquez. A referência de Garcia Marquez abre, em um primeiro momento, um caminho de adaptação evidente e marcante na obra do escritor colombiano: construir um universo em bases de extremo realismo, mas que serão questionadas por um contato inevitável e constante com o fantástico. As duas forças – o real e o fantástico – de fato estão presentes no filme de Hilda Hidalgo, mas há uma prevalência muito clara de uma sobre a outra. Enquanto os melhores momentos da prosa de Garcia Marquez surpreendem justamente pelos dois registros se amalgamarem com uma impressão de inabalável continuidade (lembremos, aqui, do sangue que sobe a calçada para avisar a mãe que seu filho havia morrido, em Cem Anos de Solidão), Hilda Hidalgo usa o fantástico apenas como uma breve fuga da dureza cotidiana. Apartado da realidade, o fantástico deixa de ser fantástico; resta apenas o onírico.
Esse distanciamento produzido é importante, pois é a partir dele que os problemas mais graves de Do Amor e Outros Demônios ganham corpo. Por um lado, a diretora demonstra inquestionável habilidade encontrando imagens expressivas para os momentos de sonho: a vela que permanece acesa debaixo d’água e o preciso jogo de claro e escuro que recorta a presença fantasmagórica de Sierva (Eliza Triana) sobre os ombros do Padre Cayetano (Pablo Derqui), em seu desejo febril, erguem-se como lembranças fortes que traduzem com perfeição idéias e sentimentos específicos. Mas, por outro, Hilda Hidalgo usará do repertório mais respeitável, e hoje já ineficaz, do estabelecimento realista de uma vivência latino-americana no cinema: Lucrecia Martel. Estão lá as mesmas paredes sujas, a relação de sexualidade ambígua entre Sierva e a criada, a mãe que não sai da cama, aquela gente suada, trágica e orgulhosa de seus cabelos cacheados, soltando pelos poros a sexualidade reprimida em cada canto do estômago. Reconhecendo que a força de O Pântano (2001) se dilui dramaticamente em revisões, muito do impacto que permanece no filme se dá na tensão que Lucrecia Martel provoca nos registros assumidos – tensão esta que está no cerne de A Mulher Sem Cabeça (2007), mas que era esboçada no primeiro longa da diretora sobretudo no hipnótico arrastar de cadeiras em volta da piscina que abre o filme. Essa tensão, que serviria tão bem à incorporação do fantástico no realismo feita por Garcia Marques, não inexiste de todo em Do Amor e Outros Demônios, mas é desperdiçada em momentos de encenação frouxa, em demasiada segurança.
A possibilidade mais expressiva de manifestação do fantástico acontece quando um eclipse escurece a cidade – mas é revelador dos problemas de Do Amor e Outros Demônios que esta cena reproduza o exato enquadramento do eclipse de Síndromes e um Século (2007), de Apichatpong Weerasethakul. Revelador, pois a força extraordinária que o signo adquire em Síndromes e um Século se deve a uma relação que a cena estabelece com o todo (um filme especialmente interessado na sobreposição de camadas de sombra, onde o encontro do sol com a lua resume a dupla face que Apichatpong emprega a cada pequeno detalhe – seja ele um dentista que também é cantor, uma perna que esconde uma garrafa de whisky ou um desdobramento da medicina de ponta como um trabalho místico), e com os desdobramentos simbólicos do tempo que o diretor deixa correr em sua duração. Hilda Hidalgo recupera este signo fragmentado, como se ele carregasse sozinho seu próprio significado. As duas camadas que deveriam se sobrepor – a saber, o realismo e o fantástico – não correm em contato; há apenas momentos diferentes onde vemos mais do sol, e outros onde vemos mais da lua.
Grande parte dos problemas de Do Amor e Outros Demônios vem justamente da incompreensão de que há vozes em movimento por trás da casca dos signos, e que esses significados muitas vezes jogarão contra a incorporação simplória da aparência promovida pela diretora. Há, por exemplo, um desdém racionalista à crença da Igreja no filme de que a mordida de um cão raivoso injetaria uma força demoníaca no corpo da pessoa atacada; mas Hilda Hidalgo usará a mesma mordida como metáfora da chegada avassaladora da sexualidade, ignorando que esse procedimento, supostamente crítico, é rigorosamente o mesmo do objeto criticado. Em sua porção realista, Do Amor e Outros Demônios se arrasta no peso das metáforas ineficazes, onde a manifestação das forças ocultas na realidade virá sempre com um plano de cortinas brancas balançando ao vento. O filme é condenado à contradição absurda de uma autenticidade previsível, onde tudo que deveria ajudar a construir um mundo “real” termina por denunciar um mundo construído.
Mas o que parece realmente preocupante, em especial no contexto de um festival que busca uma integração do Brasil ao resto da América Latina, é a dedicação de Do Amor e Outros Demônios em desempenhar exemplarmente seu papel de filme latino-americano para festivais internacionais. Por trás da eficiência de Hilda Hidalgo em trazer este imaginário “típico” para dentro do filme (do qual Lucrecia Martel e Gabriel Garcia Marquez são guardiões dos mais reputados), sobrevive a obediência acuada de uma artista que conhece perfeitamente sua condição, e a desempenha com um voluntarismo dócil e romantizado. Pois conhecer sua condição é também respeitar certos limites que, na doutrina dos festivais e do cinema de autor, constróem uma nova forma de colonialismo. Em certos casos, são os jogadores que se negam a cumprir as regras (ou melhor, que sequer sabem que estão jogando) que têm a possibilidade real de mudar sua condição. Ter consciência é também concordar, respeitar, obedecer. Diante de Do Amor e Outros Demônios, fica a certeza de que, para o cinema latino-americano encontrar para si algum caminho de fato, é preciso que os filmes sejam mais ignorantes.