Publicado originalmente na Cinética em Maio de 2010.
Em seu lugar
Desde ao menos Desconstruindo Harry (1997), todo novo filme de Woody Allen chega às telas encoberto por uma mesmíssima névoa: teria ele perdido de vez a mão ou enfim retomado o curso de sua carreira? O lugar comum disfarça a pressa juvenil, desmascarável com uma simples leitura da filmografia de Allen: mesmo em suas fases mais firmes – que tem como exemplo mais corriqueiro a sua produção na década de 1970 – sua carreira é de topografia das mais sinuosas, por vezes indo diretamente da insuficiência à plenitude (de O Dorminhoco para A Última Noite de Boris Grushenko; ou de Sonhos Eróticos de uma Noite de Verão para Zelig); por outras, fazendo o caminho contrário. Que a inclusão de filmes consagrados como O Dorminhoco (1973) e Sonhos Eróticos de uma Noite de Verão (1982) entre as obras menores não cause revolta! – o estranhamento é, na verdade, o nó principal da questão. Pois de crítico a crítico, de espectador a espectador, o único consenso a respeito de Woody Allen é a de que não há consenso possível. Cada um tem, para si, sua lista de maiores e menores, e mesmo as supostas unanimidades sempre encontram alguém que rejeita ou ama qualquer filme de Woody Allen por princípio. Da amostragem, resta somente essa sensação estranha de um realizador que vive se levantando de uma queda que nunca aconteceu, ou caindo de uma altura onde nunca esteve. Não é possível, portanto, tratar de sua obra criticamente que não por um viés ultra-subjetivo e essencialmente afetivo: Woody Allen não é um sujeito de filmes maiores ou menores, mas sim de filmes mais ou menos queridos.
Tudo Pode Dar Certo é um trabalho curioso, pois parece pensar justamente esse tumulto de recepção de um cinema que permanece essencialmente o mesmo, por um público que não pára de mudar. Em primeiro lugar, há a escalação, como alter-ego de Allen, de Larry David – sujeito que não só redefiniu o humor de situação moderno com a criação de Seinfeld, como reencarna algumas das características mais facilmente associáveis ao diretor: da paradoxal descrença judaica a uma bem articulada estratégia de constante auto-ironia. Mas mais importante, há a jovem Melody – personagem de Evan Rachel Wood que, ainda aparentemente ignorante do sarcasmo do mundo, se apaixona por aquele velho turrão e cético. Tudo Pode Dar Certo é, em grande parte, um questionamento desta paixão. Por que? Por que uma jovem tão cheia de vida se apaixona pelo cinismo derrotista, por um desencanto tão pouco promissor? De onde, em todo aquele amontoado emporcalhado de clichês de cômoda auto-flagelação, vem tamanho magnetismo – ou, seguindo adiante, o que faz com que ele por vezes aconteça de forma tão arrebatadora, e por outras termine francamente ridículo? Por que certos filmes de Allen “funcionam”, e outros não? Ou, como diz o protagonista em sua primeira conversa com a platéia, “por que vocês querem ouvir a minha história”?
Não há, no andar tateante de Tudo Pode Dar Certo, a possibilidade de respostas categóricas. Há, porém, em todas aquelas conversas não-diegéticas, um desejo franco de descobrimento, de estabelecer uma conexão real com uma geração presente – desejo que começara a deteriorar naquela conversa entre pai e filho de Dirigindo no Escuro (2002), e esfriava progressivamente a cada filme de sua fase inglesa – mas que já aparecia levemente reanimado em Vicky Cristina Barcelona (2008). Enquanto Match Point (2005), Melinda, Melinda (2004) ou mesmo O Sonho de Cassandra (2007) tentavam produzir vida por um esmero na estruturação do roteiro, Vicky Cristina Barcelona e Tudo Pode Dar Certo partem para uma chave de conexão menos cerebral, onde os afetos tentam pulsar novamente com a liberdade de Manhattan (1979) ou Annie Hall (1977).
Os tempos, porém, mudaram, e os afetos não se manifestam mais pelo existencialismo a céu aberto ou a adoração de uma cidade e um modo de vida que já não mais existem. Woody Allen parece tomado por um empenho de atualização que se torna comovente justamente por se tratar de um cinema arcaico, saudoso de uma época que ele nunca viveu, e especialmente orgulhoso de seu anacronismo. Em Vicky, esse afeto vinha da pulsão dos vermelhos, da melancolia morna dos poentes, da excitação turística que explorava novas paisagens, texturas e corpos. Aqui, uma cena cabal determina a origem do afeto: após uma crise de pânico, Boris Yelnikoff senta frente à TV com Melody, e juntos assistem a um musical de Fred Astaire. Ali, sob a orquestração melodiosa e rebuscada da trilha diegética, surge uma conexão, uma possibilidade de identificação que permanecia oculta, impossível. Ali, o afeto arregaça suas mangas: ele e Melody, em minúsculas e maiúsculas, se amam.
Tudo Pode Dar Certo é um filme de admirável felicidade neste recuo, pois percebe que a permanência de Woody Allen não deve nada à sua suposta verve textual, tampouco à moralidade farsesca de suas produções inglesas. Como diz Yelnikoff sobre seu primeiro casamento, este encontro do cineasta com um certo cinismo “era racional, fazia sentido… no papel, éramos ideais”. Mas nada disso impede a falência do relacionamento e a tentativa de um suicídio que, fracassado, descompassa todo o cinema mais recente de Allen, tirando-lhe (talvez permanentemente) sua valiosíssima fluidez. Sua conexão com uma nova geração vem justamente desse afeto perdido, desse embalo musical de seus textos e de sua mise en scène, de uma alegria de encenação (tanto para quem faz, quanto para quem vê) que morreu com a Hollywood clássica. É por aquela melodia que Boris Yelnikoff se lembra de quando conheceu sua primeira mulher, e é por ela – e para ela – que ele redescobrirá o amor.
É natural, portanto, que Woody Allen traga ao filme (sobretudo pelos atores, mas não só) um tom especialmente artificial, que evidencia sua preocupação metalinguística. Tudo Pode Dar Certo chama constante atenção para a mecânica de cues que determina a montagem e a encenação. As conversas, que pareciam acidentalmente registradas em Todos Dizem Eu Te Amo ou Hannah e Suas Irmãs (1986), dão lugar a cenas que acentuam suas entradas e saídas, como esquetes que existem somente para a câmera, flutuando em um tempo onde não há passado ou futuro possíveis. É uma escolha de tom acertada (mesmo quando pouco refinado), pois a afirmação, aqui, é de clichês cuja beleza depende de sua raiz utópica: o amor à primeira vista; a possibilidade de se encontrar felicidade em uma abertura para o mundo; a destruição do pensamento conservador com uma boa dose de liberdade; o destino; a maneira como casais (ou trios) improváveis se completam à perfeição; o poder de cura de um simples número de jazz.
Tudo Pode Dar Certo é a comprovação de como uma sequência sistemática de “erros” pode produzir um acerto; de como, entre duas pessoas cuja incompatibilidade parece incontornável, há sempre uma tradição de vivência, um … E o Vento Levou que é capaz de restabelecer um elo, e de fazer algo que era importante no passado render algo de vivo pro futuro. Nesse sentido, o filmese torna um especial justamente por Woody Allen encarar esta cisão entre passado e futuro com uma serenidade realmente afirmativa, que se torna mais forte a cada passo dado em direção à morte. Justamente por isso, o casamento de Boris e Melody não pode durar: é preciso que ela siga em frente e busque seu próprio caminho, como os jovens cinéfilos eventualmente abandonam os filmes de Allen em direção a terras de presente mais fértil. Importa pouco que, no filme, o caminho escolhido chegue muito próximo do phoney: ela se apaixona por um ator inglês que mora em um barco, lê, pensa e toca flauta – sujeito que “jamais será um gênio, mas que é atraente o suficiente para ser uma estrela”. O que é realmente significativo é que esses encontros se dão; que eles se bastam em sua brevidade e, melhor ainda, propiciam novos encontros.
Se há uma característica realmente comum a Boris Yelnikoff e Woody Allen é esse tom professoral, essa vocação iniciática que se contenta com a monumental tarefa de despertar, no outro, a paixão por se estar enamorado – em última análise, paixão celebrada e encarnada pelo próprio cinema. Esse conforto transitório, tão facilmente criticável, parece ser o lugar mais justo e nobre que Woody Allen já reivindicou para seu cinema.