Publicado originalmente na Cinética em Abril de 2010.
Da veracidade
VJs de Mianmar recompõe uma série de demonstrações públicas anti-ditatoriais registradas por um grupo de repórteres clandestinos que – como inimigos internos do regime militar – conseguem veicular pelo mundo uma vivência que o governo faz o possível para esconder. Anders Østergaard tem acesso a todo esse material, que ele monta como uma espécie de thriller circunstancial: as imagens sustentam de forma asfixiante a progressão dramática da cronologia original, que aparece impressa em cada pixel do vídeo. Dadas as condições de produção e essa acertada reconstrução dramática, é difícil não pensar em Videograma da Revolução – filme de Harun Farocki e Andrei Ujica que reconta a revolução romena de 1989 a partir de registros, sempre parciais, de câmeras da televisão estatal. A diferença cabal é a que determina VJs de Mianmar como um filme tão mais problemático: a revolução não se confirma. Dado o fracasso do ato histórico, é necessário se atrelar às únicas figuras de sucesso possíveis dentro do drama, ao único valor exaltável em meio a tão retumbante fracasso: a perseverança dos próprios repórteres.
O problema que isso acarreta é uma mudança de posicionamento que tem consequências éticas (uma vez que a ética parte da estética) desastrosas. Pois a história dos VJs – ao contrário da pública – não foi registrada como um centro em si. Ao contrário, eles se viam não como personagens, mas como ferramentas (com toda a desumanização que o termo traz, e que se fazia politicamente necessária no momento) de registro dessa revolução. A história que Anders Østergaard quer contar, portanto, não existe; ao menos, não integralmente. É uma história naturalmente lacunar, pois não foi vista como relevante no momento do registro. Os VJs não filmam a si mesmos naquelas situações, pois para eles o seu drama pessoal era irrelevante diante da magnitude do momento político. O homem se fazia pequeno.
Vjs de Mianmar parte dessa distorção gritante, essa inversão de prioridades mui contemporânea onde, dado o fracasso daquilo que se dá diante da câmera, falemos de quem está por trás dela. Diante da frustração, ou mesmo da desimportância histórica, resta ao documentário encontrar conforto no registro pessoal. Embora questionável política e esteticamente (uma vez que toda a força do filme vem mesmo dos registros dos acontecimentos, e da maneira como a câmera se coloca dentro deles), essa mudança não seria necessariamente a ruína de VJs de Mianmar se a intermitência dessa história fosse assumida enquanto tal. O problema maior do filme é justamente sua incapacidade de lidar com o que é naturalmente lacunar, preenchendo com recursos dramáticos (a música, mas principalmente a reencenação) os espaços que a história, muito reveladoramente, deixou em branco. Para esses espaços, porém, não há imagem realmente cabível. Em um filme que depende intimamente da veracidade de cada plano, a permissão da reencenação e do acento dramático musical é um suicídio em praça pública. Faltam, a Anders Østergaard, a coragem e a fé na auto-suficiência das imagens que sobram nas personagens do filme.