Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2010.
Produzindo distância
No primeiro plano de Passos no Silêncio, a câmera enquadra frontalmente um andar de um prédio, mostrando apenas duas janelas. Em uma delas, vemos uma professora que dá aula de alemão. Na outra, um aluno. Ao fim da aula – após os alunos, que se escondiam no extracampo criado dentro do campo pelas paredes, saírem da sala – o rapaz da janela se levanta, e vai em direção à professora. Ele pede que ela lhe traduza um poema – mas a ação demandada pelo enquadramento é mais importante que a fala. É o quadro que cria uma barreira entre esses dois mundos, essas duas janelas, esses dois campos. Se a câmera tivesse sido colocada dentro da sala, o espaço seria livre, e a circulação, irrestrita. Mas, mesmo com uma parede entre eles, o rapaz sai de seu mundo e, com enorme facilidade, passa para o mundo dela.
A garota leva o poema para a casa e luta com a tradução. A câmera parece se equilibrar parcamente em enquadramentos incômodos que não mostram o que deveriam mostrar, e que nunca conseguem acessar quem está diante dela. Mais uma vez, ela produz um vácuo. Não existe dramaturgia possível, e todas as cenas parecem ressaltar sua própria ineficiência. A zoom nos aproxima da personagem só para deixar claro o quanto ela continua distante. Em outro plano, vemos a protagonista sentada no chão, com os cabelos molhados, cercada por folhas de papel. Em um golpe de raiva, ela amassa as folhas ao redor enquanto grita “Merda!”, e repousa a cabeça sobre os joelhos dobrados, em uma cena que larga mão de todos os recursos possíveis para comunicar sua dor, desespero e auto-comiseração. Uma cena que, esvaziada em um clichê, transmite apenas sua incapacidade de transmitir qualquer coisa.
E aí temos os passos do título, cortados um a um, sempre pisando um chão diferente. Sem som e sem raccord, parecem flutuar em outra esfera. Acessar o outro é sair de casa, sair do quadro, sair do entorno cognoscível. É, sobretudo, caminhar entre espaços desconectados. Vemos a garota andando na praia, em um contra-plongée silencioso e absolutamente estático. O plano é belo, mas também consciente de sua ineficácia. A câmera sai do chão e se põe a correr, seguindo a personagem até perdê-la de vista e restarem apenas os seus rastros, suas pegadas como evidências de uma passagem. Para compreender o esforço de se passar de uma janela a outra, quebrando a lógica imposta pela decupagem, a câmera precisa apreender a vertigem absoluta.
Pouco importa a tradução do poema; o que importa é que, ao fim do filme, a professora vai até à carteira do aluno, saindo de sua janela e adentrando o mundo dele. A caminhada, como a dele, parece fácil, mas Passos no Silêncio nos dá consciência do peso daquela passagem. Retoma-se, aqui, a tradicional narrativa do herói, em que a função da dramaturgia é justamente colocar obstáculos entre a origem e o destino final. A câmera se assume produtora de distância justamente para ressaltar a beleza da determinação dos personagens em quebrá-la.
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