Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2009.
Matéria em movimento
White Material se explica todo em seu prólogo, mas só é possível perceber isso quando já se viu o filme inteiro. Começamos no final, no pós-crise, em um momento onde as tensões parecem novamente afrouxar, e as coisas cessam o movimento para assumirem novas posições. O engenho já foi incendiado, a nova geração ou foi morta (os rebeldes) ou enlouqueceu (Manuel, interpretado por Nicolas Duvauchelle), os mitos acabaram na fogueira, e a ordem foi restabelecida pela milícia do prefeito. Ainda no prólogo, um plano subjetivo adentra a casa dos colonos – fazendo lembrar aquela ponta de cigarro acesa da abertura de O Intruso (2004) – e ilumina detalhes de decoração local. Máscaras, quadros e vasos são descobertos pela luz pontual de uma lanterna, recortando os elementos da escuridão.
Temos aí os dois elementos que norteiam a construção do filme. Em primeiro lugar, há a dobra temporal que, mesmo impossível de ser plenamente decodificada (há planos cuja instância temporal permanecerá misteriosa, não importa quantas vezes se retorne ao filme), gera a impressão de uma estrutura que está em constante transformação. Começamos do final, do momento em que uma nova ordem foi instaurada, e a matéria magmática do filme retomou o estado de repouso. Após o prólogo, voltamos no tempo para um outro momento de relaxamento (que, mesmo em seu maior grau, nunca consegue dissipar a tensão), onde o cerco ainda está por se fechar completamente em torno das personagens. A estrutura do filme é ditada por uma rima de estados (de um momento de relaxamento para outro), e White Material será movido por um incessante movimento de compressão e descompressão. Se em 35 Doses de Rum (2008) tínhamos a construção de uma narrativa a partir de suas lacunas, aqui somos jogados em uma situação misteriosa, rodeados pela ameaça desse mistério. Aos poucos sentimos o filme se comprimir até não restar mais matéria. White Material é uma espécie de big bang.
Mas temos, também, aquele plano da lanterna que ilumina seu interesse na escuridão profunda. Claire Denis volta à África, continente onde cresceu e realizou Chocolate (1988), seu primeiro filme. Como os títulos deixam claro, os dois filmes partem de princípios opostos. Em Chocolate, a protagonista – criança e branca – estabelecia uma relação fantasiosa, mesmo que com momentos de incompreensão, com aquilo que mais superficialmente distinguia o outro: a cor da pele. A miscigenação era adocicada por esse olhar infantil, onde as relações entre as raças eram possíveis e rendiam frutos únicos, particulares de um erotismo que se sente na língua. Onde antes tínhamos o recorte mais focado do 1.66:1, agora expandimos para um cinemascope que é ainda mais expressivo por, mesmo em seu constante movimento, nunca conseguir captar a razão da ameaça. A lacuna está dentro do quadro. Alarga-se a visão, ganhando toda a tela, mas ela continua não conseguindo enxergar a tensão que sentimos nos nervos. Aqui, a cor ainda determina, mas o título assume uma visão inversa; desta vez, são os negros que olham para os colonizadores brancos. A ênfase sai da relação racial cândida da infância, e ganha uma franqueza de interesses: material de branco, coisas de branco. A relação entre as duas raças é, sobretudo, comercial.
Maria (Isabelle Huppert) é como uma versão crescida da jovem França, a menina que protagonizava Chocolate. Já perto do final do filme, ela tem uma conversa com Jean-Marie, um de seus funcionários de confiança. Sentados no telhado do engenho, os dois conversam sobre a vontade de não fugir. O luar recorta os dois corpos, mas não existe qualquer luz vinda de frente. Naquele momento, ambos parecem negros, iguais. Jean-Marie diz não querer abandonar sua terra, e Maria diz se sentir da mesma maneira. “Para você não é a mesma coisa”, ele responde. “Você não quer que tomem o que é seu”. A câmera fecha em close sobre Isabell Huppert, e o contraluz desenha seus cabelos ruivos. Ela nunca poderá ser negra. O desejo de Maria de se fazer parte daquele ambiente é constantemente tolhido pelo atravessamento dos olhares nativos, que, quando cercados, não mais fingirão cordialidade. “Por causa de pessoas como você, esse país não vale nada”.
Valor. Em O Dinheiro (1983), Robert Bresson congelava a mise en scène para se aproximar de sua personagem-título. Relações estabelecidas pelo dinheiro são relações frias, robotizadas, estáticas em seu movimento. Aqui, a questão é menos o dinheiro, e mais o valor. A câmera não se permite fixar pois, ao contrário do dinheiro, o valor é transferível, é aferido. A colonização é uma aferição de valores: assim como os brancos usam máscaras africanas para decorar suas salas, os negros fetichizam tudo que conseguem dos brancos. De um lado, o museu; do outro, o mito. A bermuda vemelha que os negros roubam de Manuel logo vira uma bandeira, assim como, ao final, eles comerão remédios como se fossem balas. Artigos de branco, artigos de valor. Os negros, por sua vez, serão filmados pelo ponto-de-vista de Maria, com rostos de uma expressão bruta e deformadora que reconfiguram as carrancas decorativas. Ali, aquelas imagens retomam seu sentido original, aquele que foi esvaziado pelo olhar também fetichista dos brancos colonizadores. De um lado, os negros projetam seu misticismo pelo material branco; do outro, os brancos se apropriam esteticamente do material negro. Em ambos os casos, perde-se o sentido original.
Em dado momento, ouvimos um reggae tocado na rádio local, mas logo Claire Denis sobrepõe a trilha sonora original do filme, obrigando a convivência daquela manifestação espontânea com o comentário do Tindersticks. White Material é muito sobre esse somatório de olhares, essa sobreposição transparente de conflitos que produzem uma cacofonia. Como Chocolate, é um filme sobre a miscigenação; ou melhor, sobre sua inevitabilidade. Daí que sua personagem mais importante não seja exatamente Maria, mas talvez Manuel – rapaz nascido na África mas que, por ser branco, é tratado como estrangeiro em sua própria terra. Manuel carrega tanto do pragmatismo francês em si, quanto do misticismo africano: com um corte, o rapaz pode se transformar em um cão – algo que o filme promove pela montagem, e que depois será dito explicitamente por um xamã que aconselha Maria, mais à frente. É com ele que White Material parece mais se identificar, pois transita em um limite estreitíssimo onde não se é reconhecido como coisa alguma; quando a ameaça de implosão vem de todos os lados – até mesmo da pulsação das máquinas que descascam café – só resta ser matéria, e manter-se em constante transformação. Claire Denis, cineasta do deslocamento, faz, em White Material, um filme sobre a impossibilidade de se assentar.