Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2009.
A verdade do mito
Tyson não carrega o nome de seu personagem de forma leviana. É somente Tyson e a sua verdade que interessam a James Toback, e só ela caberá no filme. Não haverá “o outro lado da história” ou a contextualização jornalística do que é dito: Don King é um ladrão, Desiree Washington (a jovem miss que acusou o lutador de estupro) é uma mentirosa sem alma ou caráter, e todas as derrotas foram lutas que Tyson perdeu para si. As imagens de arquivo são poucas, e funcionam como ilustrações (no caso das lutas, bastante preciosas) daquilo que é dito.
Tyson é, essencialmente, um filme oral. O que temos, em quase toda a duração do filme, é Tyson contando sua própria história. Simples assim, preto no branco; que os tons de cinza fiquem para um outro filme. Às favas com When We Were Kings: aqui, o que importa é a verdade deste homem. É essa opção pela unilateralidade que, não sem alguma surpresa, produz toda a força do filme. Pois o que fez de Mike Tyson o lutador de boxe mais excitante da história (segundo ele mesmo) é a combinação de uma consciência bastante clara de seu próprio espetáculo, com uma vida off stage (melhor diria, em um outro palco) que oscilou constantemente entre a glória absoluta e a profunda miséria. Talvez nada disso seja verdade, mas é a essa a estória que Tyson – filme e personagem – inventa para si.
Mike Tyson, narrador de si mesmo, confere sentido para a sua própria vida percebendo-se em um incessante movimento pendular. “Ou eu vivo no céu, ou no fundo do oceano. Não sei viver no meio”, diz ele, perto do final do filme. O que parece, porém, é que é justamente nesse “meio” que Tyson passa a maior parte de sua vida; mas isso não é a história que ele quer escrever – logo, não cabe no filme. A história é a dos altos e baixos – dos cinturões às clínicas de reabilitação – e o único momento em que nos sentimos minimamente próximo da terra é no presente, justamente onde a história ainda não se transforma em narrativa. Essa obsessão pela narrativa em dó de peito seria lamentável, não fosse ela uma criação espontânea da personagem do filme. Ao longo dos depoimentos (pois não são conversas, sequer entrevistas), às vezes Tyson parece um sujeito sensato; em outras, uma besta imprevisível. Nunca, porém, um mentiroso.
Toback tem todo o mérito em perceber a força dessa auto-fabulação, e deixar que sua personagem se entregue a ela. Suas articulações são mais poderosas quanto mais transparentes, e toda tentativa de problematização do discurso (como a banal sobreposição de falas que pontuam o filme – sobreposição que nunca produz um sentido articulável para além do ruído) saem pela culatra. O discurso de Tyson é problemático e fascinante em si, pois se desvela como uma construção voluntária. O que temos, em Tyson, não é tanto o mito quanto o homem que tenta se contar como mito. Tyson é um filme sobre um sujeito extraordinário fazendo um esforço de vida ou morte para continuar se enxergando como tal.