Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2009.
A produção do sublime
Pickpocket começa com uma cartela de texto que conta, resumidamente, todo o filme que veremos em sequência. O sentido desse procedimento era comum no cinema de Robert Bresson. Em O Condenado à Morte Escapou (1956), seu filme anterior, o título entregava a trajetória da narrativa: um homem é condenado à morte e, eventualmente, escapa da prisão. Quando ele escapa, o filme acaba. Aqui, o texto inicial desarma as expectativas narrativas em relação a um filme que, essencialmente, permanecerá narrativo. Seu desenrolar é uma rememoração de sua personagem principal que, destacada no futuro, recorta esse momento de vida como um arco dramático, lhe conferindo sentido. Mas nós já conhecemos os eventos, e essa pronta anulação é uma maneira de Bresson conduzir nosso interesse a outros aspectos do filme. O que acontece importa menos do que como cada coisa acontece.
O sentido desse salto é evidente uma vez que se conhece minimamente o método cinematográfico de Robert Bresson. Sua busca pelo apartamento radical entre o cinema e os métodos de atuação teatral (a famosa teoria dos modelos) é reveladora de uma confiança absoluta na decupagem cinematográfica, onde a emoção – faculdade que Bresson dizia tentar alcançar antes da inteligência – não vem da projeção psicológica das pessoas em cena, mas sim da maneira como a câmera e a montagem se colocam criticamente diante de o que é encenado. “Meu filme nasce primeiro em minha cabeça, morre no papel; é ressuscitado pelas pessoas vivas e objetos reais que eu uso, que são assassinados no filme, mas, organizados de uma certa maneira e projetados em uma tela, voltam à vida como flores na água”, dizia um de seus mais populares aforismos.
Ao revelar a trajetória da personagem principal no texto de abertura, Bresson chama atenção justamente para o que os artifícios do cinema são capazes de produzir. Assim como os roubos se tornam uma complexa e nada dissimulada coreografia de mãos e gestos, o diretor apresenta a própria construção cinematográfica em sua plena artificialidade. O envolvimento vem pelo jogo de sedução, o flerte que transforma cada roubo em uma conquista. A relação da personagem com o crime é menos uma questão financeira do que um desafio sensual, onde a destreza e a habilidade manual produzem uma sensação tão forte de vertigem que chega a se aproximar do êxtase. Tal qual Barrington, o ladrão do livro lido por Michel (Martin LaSalle), o diretor também usa ferramentas para produzir um determinado estado. A diferença é que ele não pretende escondê-las. Essa transparência ética de construção chega ao sublime em Pickpocket, e é uma das quebras fundamentais realizadas por Bresson – algo que faz dele referência para grande parte do cinema realizado de lá para cá, diretamente evocado em filmes de João César Monteiro, Jia Zhang-ke, Johnnie To e Jean-Luc Godard.
Esse aparente mecanicismo não anula as afecções da obra, pois o êxtase é o destino final. Em dado momento, Jeanne (Marika Green) pergunta a Michel se ele não tem fé em nada. “Acreditei em Deus, Jeanne…”, ele responde, “por três minutos”. Embora fugidia, a epifania – que, em Bresson, comumente passa pela religião – deixa uma cicatriz permanente. Ao construir uma personagem que busca restituir esse encanto, Bresson antecipa um sentimento que se tornaria fortíssimo no cinema pós-maio de 1968: a errância distópica de Profissão Repórter (1975), Badlands (1973) e O Último Tango em Paris (1972). Aqui, porém, o reencontro com a epifania é mais do que possível; ele pode ser produzido pela arte. Michel vivenciou o sublime por três minutos, e percorreu os mais estranhos caminhos para encontrá-lo novamente. O reencontro é possível, mas somente no voice over, na organização narrativa que confere sentido àquela série de acontecimentos. Pickpocket traz esse encanto raro dos filmes especulares, onde a personagem faz uma trajetória emocional gêmea à dos espectadores. Robert Bresson não só nos conduz ao sublime, como nos atenta para todos os marcadores que servem como guia.
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