Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2009.
Fogueira das vaidades
Katalin Varga tem, a princípio, todos os elementos para se tornar apenas mais um drama social romeno. Estão lá as paisagens em sua plena frieza verdejante; a predominância dos cinzas nos interiores; as consequências trágicas de um ato de violência contra uma mulher em uma sociedade de recorte claramente machista. Aos poucos, sua fruição se distancia de seus pares geográficos, e acaba estabelecendo relações com Anticristo (2009), de Lars von Trier. Aqui também, um trauma sexual feminino ocupa o centro da narrativa (um estupro), a floresta se torna espaço para a alegoria e o cinema de horror é revisitado com um olhar externo, que pensa as convenções do gênero em um processo assumido de terceirização que as desloca de seu ambiente criador.
Existe, porém, uma diferença essencial que é da exata medida da distância entre os dois filmes: enquanto Lars von Trier se projetava vaidosamente em intervenções escancaradas sobre cada uma das cenas de Anticristo, Peter Strickland usa a câmera – e somente a câmera – para extrair uma perturbadora sobrenaturalidade dos ambientes predominantemente naturais de Katalin Varga. Neste filme de estréia, o diretor toma um caminho mais interessante ao renegar tanto uma estilização excessiva do espaço, quanto um protocolo exterior às situações que ele filma. O mundo se apresenta apenas como mundo, mas há um sujeito que se relaciona com ele a partir de uma percepção construída por suas experiências. Essa relação não se projetará sobre o espaço (como em Anticristo), mas o espaço não existirá frio, a despeito dela (como faz, com claras intenções políticas, Corneliu Porumboiu em Politist, Adjectiv). É a câmera – justamente a instância que existe entre o espaço e o sujeito – quem olhará para o mundo de maneira deformadora, peculiar e, aqui, por vezes assustadora.
O filme encontra um equilíbrio quase sempre preciso (pois ainda temos as malditas reverberações sonoras que, como Lars von Trier, Peter Strickland adota como atalho torto para a tensão) entre o drama realista e as estilizações do cinema de gênero. Por meio da manipulação da luz e da maneira como câmera e vetores se movimentam, uma dança à fogueira logo se torna um culto de adoração ao diabo – como um campo romeno é filmado para evocar paisagens bíblicas, ou a escolha precisa das lentes da câmera produzem uma forte sensação de vertigem em um simples passeio de barco. Katalin Varga apresenta um diretor igualmente interessado em envolver os espectadores pela dramaturgia (e uma diferença brutal em relação a Anticristo está na exposição gradual – e nunca glorificada – do trauma de sua personagem-título) e em descobrir maneiras de traduzir esse sentimento pelas propriedades técnicas e físicas do cinema (em dado momentos, é possível perceber traços até mesmo de um Anticipation of the Night, de Stan Brakhage). Embora isso não seja suficiente para reservar a Peter Strickland um lugar entre os grandes, é uma combinação interessante o suficiente para manter aceso todo o interesse por seus próximos filmes.