Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2009.
Meta-bromance
Ao longo da história do cinema, existem inúmeros casos de absorção, pela indústria do cinema, de inovações de linguagem surgidas dentro de um ambiente de vanguarda. O caso mais clássico talvez seja o da steadycam – aparelho inventado para permitir a mobilidade de câmera dos cinemas novos, mas sem a agressividade da câmera no ombro –, mas esse processo auto-fágico está em constante movimento, oferecendo sempre novos exemplos (da relação de Brakhage com o videoclipe à fragmentação da montagem incorporada ao telejornalismo). Em O Dia da Transa, porém, existe uma inversão um tanto mais rara pois, aqui, é o cinema “de arte” que se aproxima e incorpora uma das criações mais vigorosas do cinema mainstream recente: o bromance. Sim, O Dia da Transa pega diversas das questões centrais do grupo de Judd Apatow e as repensa para o ambiente do cinema independente norte-americano – com sua câmera solta, a mise-en-scène de aparência improvisada, a iluminação parca quase sempre extraída de fontes práticas do próprio ambiente, os atores desconhecidos – visando uma relação com o público que, aparentemente, se distancia de sua fonte.
Em essência, não é um processo tão distante da aproximação feita pela nouvelle vague com diretores como Hitchcock. Ainda assim, o potencial catastrófico desse deslocamento não se realiza por um claríssimo porém: Lynn Shelton não só tem plena consciência do movimento que ela está propondo, como constrói no espectador essa mesma consciência. Afinal, O Dia da Transa é sobre si mesmo: um filme sobre a idéia de se levar o bromance às últimas consequências, com a bêbeda idéia de se produzir um vídeo para um festival de pornôs “artísticos” (ou, como eufemizam os próprios personagens, “um filme de arte erótica”) onde dois amigos heterossexuais (um deles, casado) fazem sexo explícito para provar o tamanho de seu amor. Na faixa comentada de Superbad, Jonah Hill lembra, com perceptível deboche, de uma crítica que dizia que para Superbad alcançar o que almejava, era necessário que os dois amigos fizessem sexo ao final, com fazia Alfonso Cuarón, “in the beautiful Y Tu Mamá También“. O Dia da Transa não só oferece essa questão, como discute, com isso, seu próprio procedimento: levar esse conceito às últimas consequências é, em si, um ato de particular validade artística?
O filme, curiosamente, parece concluir que não. Deslocar uma ação de seu ambiente para validá-la publicamente não produz bem algum – não à toa, a filosofia do tal festival é a de queimar todas as fitas após essa única exibição pública. É interessante, portanto, que Lynn Shelton importe uma premissa para, ao fim, recusá-la. Pois o que existe de valioso no cinema independente norte-americano é menos essa chancela artística que ele se tornou – sendo Sundance o efeito mais óbvio – e mais a sua dedicação em deslocar a atenção dos grandes acontecimentos para os miúdos; da encenação espetaculosa para o improviso da intimidade. É essa inversão que conecta sujeitos tão distantes quanto Cassavetes, Gus Van Sant, Andy Warhol e os primeiros filmes da nova Hollywood, a quem Lynn Shelton busca se filiar. São diretores que, ao contrário de Larry Clark e James Cameron Mitchell, percebiam o sexo frontal como algo não muito distante da lógica do espetáculo do cinema mainstream (lembremos, aqui, do essencial Blowjob, de Andy Warhol), e que preferiam problematizar sua representação a simplesmente representá-lo.
Com ambições semelhantes, O Dia da Transa tem momentos de maior força justamente quando baixa seu tom. Ali, quando a câmera precisa estabelecer uma relação entre as pessoas, e dela com essas pessoas, Lynn Shelton cria momentos de intimidade bastante sólida, que são fortes justamente pela honestidade de sua discrição. Isso é perceptível desde o enquadramento da única cena de sexo consumado em todo o filme, até pela produção de proximidade gerada pelo extremo plongeé na cena em que Ben (Mark Duplass) conta Andrew (Joshua Leonard) sobre um breve desejo homossexual sentido na adolescência. A câmera se coloca frontalmente, no teto, justamente para onde olham os personagens em seu momento de maior sinceridade, deitados ao chão, conversando como velhos amigos. O olhar para o teto – que é um olhar para fora; um olhar de sonho – se torna um olhar para a câmera, e ali se conquista uma cumplicidade plena entre as duas partes. É essa natureza de relação entre câmera e personagem que o cinema independente norte-americano melhor estabeleceu, e que Lynn Shelton consegue – com alguma regularidade – recuperar em O Dia da Transa.