Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2009.
A verdade da mentira
É fato consumado que Steven Soderbergh é dono de uma das carreiras mais disléxicas do cinema contemporâneo. Sem qualquer constrangimento, o diretor transita entre projetos de extrema ambição (Traffic, Che), para filmes “de arte” em tom menor (Sexo, Mentiras e Videotape, Full Frontal) e exercícios de gênero sem qualquer pudor metalinguístico (a série 11, 12 e 13 Homens…). No último ano, se Soderbergh já havia passado pelas duas pernas mais “sofisticadas” de seu cinema, O Desinformante! fecha essa jornada panorâmica reinstalando o diretor, confortavelmente, na abordagem que melhor lhe cabe: a franca vagabundagem. Aqui, Soderbergh revive um tipo de cinema um bocado esquecido – aquele parente próximo da lounge art que era melhor praticado no cinema norte-americano por Blake Edwards, e que tem um isolado caso brasileiro em Cassy Jones, o Magnífico Sedutor (1972), de Luís Sérgio Person.
Não há, porém, qualquer margem para o risco histérico; Steve Soderbergh se interessa, sobretudo, pelo charme retrô do gênero, ainda melhor revisitado por Steven Spielberg em Prenda-me Se For Capaz (2002). Estão de volta as trilhas de big band inspiradas em Henry Mancini, a agilidade do texto e as ambientações levemente estilizadas, que aqui se tornam mais delicadas porse tratar de um filme de época, mas de época extremamente recente. A empolgação do diretor diante disso tudo faz de O Desinformante! um filme bastante prazeroso de se ver, pois a fluidez da encenação motiva um envolvimento que, por vezes, só o excesso de descolamento do voice over parece abalar. Ainda que imperfeito – como todos os bons filmes de Soderbergh – O Desinformante! interessa por propiciar, ao diretor, retomar uma de suas mais potentes características: o gosto pela farsa. Tal como 12 Homens e Um Outro Segredo (2004), que talvez ainda seja seu melhor filme, O Desinformante! parte de uma inversão completa na representação de papéis sociais – como a personagem de Julia Roberts tentava se passar por Julia Roberts, em uma sequência do filme de 2004. Esse jogo fica claro tanto pela troça constante com o filme de Michael Mann (que o título em português indica com alguma propriedade), como pela maneira como o diretor representa essas inversões pela manipulação de elementos da construção cinematográfica.
Pois, nos erros e nos acertos, o cinema de Steve Soderbergh – não só diretor, mas também fotógrafo – sempre tentou buscar equivalentes estéticos para as inquietações motoras de cada um de seus filmes. Mesmo quando o resultado é hediondo – como o contraste de azuis e amarelos em Traffic (2000); ou o uso banal do vídeo em Full Frontal (2002) – é fácil reconhecer a intenção do diretor de contaminar fisicamente a imagem com aquilo que ele filma. Aqui, Soderbergh tem uma solução bastante intrigante: mesmo nas situações de interior, o diretor usa filmes balanceados para luz do sol. Assim como a personagem de Matt Damon se livra entortando as palavras, Soderbergh cria sua mais efetiva solução visual trapaceando a câmera. É uma idéia bastante simples, pois transporta literalmente a inversão constante da trama para o uso da película. Os resultados, porém, são expressivos, pois o calor da coloração âmbar dá ao ambiente corporativo um constante desequilíbrio interno, produzindo uma sensação de claustrofóbico descompasso que não é interna à cena, mas sim à câmera. É uma maneira de Soderbergh separar aqueles ambientes em uma lógica própria, inversa à do mundo natural (a luz do sol que predomina nos lugares onde se está mais livre das convenções sociais), que garante a adesão do espectador ao pilantra simpático encarnado por Matt Damon. É justamente em filmes de vento, como esse, que o melhor de Soderbergh aparece, pois suas pretensões são mais proporcionais ao seu jogo de cinema. Em sua corrente de mentiras, O Desinformante! é um exemplo menor, mas bastante engajador, do cinema descartável e, ironicamente, mais memorável de Steve Soderbergh.