Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2009.
A verdade visível
Sagrado Segredo constrói a narrativa de um diretor de cinema que busca reencontrar sua fé. Depois de vermos um garoto que entra em uma igreja acompanhando uma senhora, a câmera de Sagrado Segredo se coloca no interior da encenação do grupo Via Sacra (que interpreta a Paixão de Cristo em Planaltina, no Distrito Federal), e levará alguns minutos até mostrar um primeiro plano da platéia que assiste ao espetáculo. Tanto na cena da igreja, quanto no teatro da Paixão, o céu aparece completamente superexposto, e podemos ver apenas aquilo que acontece dentro da encenação. O elenco do grupo de teatro é entrevistado – eles dizem seus nomes, suas profissões, e alguns relatam o exato momento em que encontraram a plenitude de sua fé durante uma das encenações do grupo. Em uma reunião de equipe, o diretor do filme dentro do filme se diz impressionado com os relatos dos encontros divinos vivenciados pelo elenco: “Eu também quero viver esse encontro”, ele diz.
Se lembramos de Lula, personagem crucificado no brilhante Meteorango Kid: Herói Intergalático (1969) – ainda hoje o filme mais associado ao nome de André Luiz Oliveira – podemos pensar Sagrado Segredo como um retorno a uma imagem central também na carreira do diretor. O interesse por Jesus, porém, é menos como santo, e mais como estímulo de devoção. André Luiz Oliveira não vai à igreja conversar com fiéis, mas sim com um grupo que interpreta uma parte da vida de Cristo, e que passou a conhecê-lo a partir dessa encenação – pois a vida de Jesus é, antes de qualquer coisa, uma narrativa. A fé é mais projetada sobre essa narrativa do que sobre a figura, pois é ela quem pode conferir algum sentido à vida. Interpretar é conhecer o outro. Sagrado Segredo vai buscar a plenitude espiritual na verdade da encenação; do lado de fora, o mundo é superexposto, luminoso demais para ser visível ou compreensível.
Sagrado Segredo, portanto, não é tanto um filme sobre Jesus Cristo quanto é sobre a encenação. Como a narrativa, ter fé é, antes de tudo, estabelecer limites de o que se vê, e o que não se vê. As perguntas aos entrevistados são feitas por atores que interpretam uma equipe de filmagem. Como contraplano aos entrevistados, vemos imagens da equipe, ou do “diretor” do filme (ou melhor, do ator que o interpreta) fazendo as perguntas. Existe, portanto, um jogo de camadas que estaria próximo daquele feito por filmes como Moscou (2009) ou Aquele Querido Mês de Agosto (2008). O registro documental é colocado em contato com uma encenação de making of que, por sua vez, buscará sua verdade interna nessas entrevistas. Daí se explica, portanto, a encenação do making of: reencenar o processo do filme é, de certa forma, fazer dele narrativa e buscar nele algum sentido.
E aí surge o problema maior de Sagrado Segredo, que também é o que o separa de Moscou e Aquele Querido Mês de Agosto: a encenação, aqui, é de um esquematismo absolutamente improdutivo. Pois nos filmes de Coutinho e Miguel Gomes, passa-se pela desconstrução da cena para se construir uma verdade nova e potente dentro dessa mesma cena. O fim, portanto, é a encenação que, após desmontada, volta mais íntegra, mais forte. Em Sagrado Segredo temos a via inversa, pois o desvio metalinguístico é frouxo em suas armações internas, e acaba servindo apenas ao jogo que ele mesmo inventa. Dentro dele, nunca encontramos a força que aparece no registro documental da encenação da Paixão, ou das falas das personagens. E aí pouco importa se a imagem é verídica ou não, pois o fracasso da cena está em sua incapacidade em inspirar verdade.