Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2009.
As grades do rigor
Morro do Céu parte de uma estrutura interessante, além de um pouco negligenciada no panorama de produção brasileiro: usar um material captado de forma documental para organizá-lo tal qual um filme de ficção, construindo uma dramaturgia. Isso, porém, nunca fica literalmente expresso, podendo apenas ser intuído pela maneira como as cenas se apresentam. Não temos discussões metalinguísticas dentro do filme, ou um plano sequer onde há presença do diretor – nem mesmo em voz off – ou da equipe. Na verdade, não existe equipe, tampouco: Morro do Céu é captado solitariamente por Gustavo Spolidoro, e organizado como material contínuo na montagem. A impressão – ou incerteza – de estarmos diante de uma organização ficcional é questão de estrutura: em cada sequência, predomina a montagem em raccord espacial ou sonoro, enquanto a estrutura-macro do filme organiza essas sequências entrecortadas por elipses.
Não estamos, como em alguns dos filmes exibidos na Semana dos Realizadores, perto de Jogo de Cena (2007), Santiago (2007) ou Serras da Desordem (2006); mas sim, de Robert Flaherty e Jean Rouch. Existe, porém, uma certa subversão da abordagem comum a ambas as referências. Pois enquanto Flaherty e Rouch partiam da re-encenação de costumes para fins etnográficos, aqui, a aproximação de Spolidoro com as personagens e o espaço é de essência narrativa ainda mais primária: construir um autêntico boy meets girl. A ida à serra italiana do Rio Grande do Sul – local que, para além do túnel, carrega um ar de novidade cinematográfica semelhante ao das serras japonesas de Suzaku (1997), de Naomi Kawase – é para acompanhar um rapaz chamado Bruno e, como logo descobrimos, sua primeira paixão por uma menina de Potiporã – cidadezinha próxima ao morro onde o rapaz mora com a família, que dá título ao filme. Existe, sim, um interesse por tudo aquilo que torna esse espaço particular: dos sotaques que fazem pensar em Fargo (1996), aos costumes e festas que mobilizam aquela comunidade. Mas, ao fim das contas, a ambientação prepara uma atmosfera para aquilo que mais interessa a (e em) Morro do Céu, que é justamente a possibilidade de se construir dramaturgia a partir de algo tão mínimo e avassalador quanto uma primeira paixão. Esse frescor da situação filmada envolve o filme em um prazer bastante raro, que se vive em pequenas doses ao longo da projeção.
Mas uma primeira paixão pode ser tudo, menos modesta em seus arroubos. É preciso atenção, portanto, à maneira como Gustavo Spolidoro se aproxima do que ele filma, para se perceber problemas que se escondem – com bastante facilidade, e alguma justiça – atrás de uma beleza plástica que, embora notável, é incapaz de reproduzir integralmente esse feelgood. Spolidoro determina, para a câmera e a montagem, um protocolo tão fechado de convenções que acaba por desperdiçar, em grande parte, aquilo que poderia produzir um impacto realmente especial a partir delas; o momento em que uma primeira paixão pode se tornar uma paixão de (e por) cinema. Pois o jogo estabelecido por Bruno e sua pequena – muito sabiamente deixada sempre no extracampo – é uma dança de atração e repulsa, cheia de regras sociais que a própria paixão inspira a quebrar; algo que raramente contamina o filme. Sobrevivem os planos fixos, enquadrados com notável rigor (existem, ao menos, uma meia dúzia de planos de extraordinária beleza de composição), que observam a cena com um pudor enorme em interferir naquilo que ela filma.
Percebam, porém a diferença entre se filmar o pudor, e filmá-lo com pudor: mesmo nos filmes que mais abertamente se entregam à observação – de Lumière a Wiseman –, o salto da reportagem pro cinema sempre esteve na reorganização de um espaço a partir de uma impressão que a dinâmica interna desse espaço produzia, e determinava à câmera. Mesmo no mais estrito cinema direto, o espaço sempre se curvou às deformações da zoom. O que falta a Morro do Céu para ser um grande filme – pois não há dúvidas que, mesmo quebradiço, o interesse que ele suscita é íntegro – é perceber que só faz sentido oferecer às situações filmadas uma mise-en-scène que é anterior a elas se essa inadequação produzir um curto-circuito. Aqui, isso não existe; se perde, com isso, tanto a crise quanto a entrega.
A reticência em interferir não pode ser confundida com ética: às vezes é preciso se aproximar, se afastar, se colocar criticamente dentro de uma situação para produzir, assim, um sentido novo dentro dela. Caso contrário, o que resta é um protocolo anterior, paralelo ao que é filmado, que nem sempre é capaz de extrair toda a potência das situações que se oferecem para a câmera. Esse problema é perceptível tanto na maneira de enquadrar quanto, ainda mais gravemente, na montagem. Pois a insistência nos planos médios e gerais é lentamente sabotada pela estranha opção de deixar todos os planos com uma duração quase padronizada, com cortes que piscam na tela a cada seis segundos, sem produzir com isso um efeito significativo. Morro do Céu poderia ter a mesma duração com 2/3 dos planos que tem, não por uma defesa incondicional da duração, mas sim de planos essenciais, que durem o quanto sua ação interna solicitar.
Muito parecido com filmes como A Casa de Sandro (2009), de Gustavo Beck, e Dia dos Pais (2008), de Júlia Murat e Leonardo Bittencourt, Morro do Céu mostra uma enorme consciência na organização interna do plano – da unidade cinematográfica – que não se repete na sensação de unidade que precisa conjugar esses planos. A relação com o filme se dá neste terreno ao mesmo tempo desigual e estimulante, onde o impacto de cada partícula nunca extravasa para a obra completa, mas é ainda forte o suficiente para sustentar um certo transe. Talvez seja esta a maior dificuldade da passagem dos filmes de curta-metragem para os longas: perceber que os atos respondem a um corpo muito maior, que depende ainda mais de uma harmonia, de um equilíbrio entre tempos e formas visuais – algo que, no curta, é mais fortemente condicionado ao impacto de cada golpe. Quanto maior o corpo, mais sensível ele é à vertigem.
Por conta disso, o filme de Gustavo Spolidoro inspira sensação muito semelhante à linha do trem inacabada que seus protagonistas visitam, transitando em um limite tenso entre o que não foi descoberto e o que foi abandonado. Após a desilusão amorosa – o fim da história, e o fim da noite – vemos Bruno caminhar, sobre os trilhos, de volta para a casa. Em plano mais aproximado, o rosto do garoto aparece em contraluz, completamente escuro, cercado pelo leve brilho da noite. Na banda sonora, ouvimos o barulho do trem em movimento, sem sabermos se o som é sobreposto àquela cena, ou se o trem se aproxima, de fato, fora do quadro. Nesses segundos onde a diegese é suspensa, jogando o espectador em um estado de indefinição que o aproxima da personagem, Spolidoro constrói, enfim, um momento de grande força – que será, em parte, neutralizada pelo restabelecimento da diegese no plano final. Ali, no casamento de dissonâncias que move aquele plano, parece existir o grande filme que Morro do Céu nunca chega a ser.