Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2009.
Quando menos é mais
Já próximo do final de Viagem aos Pirineus, temos uma sequência de planos das montanhas enquadradas de ponta cabeça. Na banda sonora, um som de água nos faz uma pergunta: estamos a ver um reflexo das montanhas no lago, ou apenas uma imagem realmente virada ao contrário? A câmera dos irmãos Larrieu não só nunca nos oferecerá resposta pra essa pergunta, como repetirá essas imagens, duplicadas – em espelhamento completo – nos créditos de encerramento do filme. Em A Câmera, primeiro volume da essencial trilogia de livros do fotógrafo Ansel Adams, o autor defende o uso das câmeras fotográficas de grande formato por, entre outros motivos, o visor da câmera não corrigir a inversão ótica produzida pela objetiva. Segundo Adams, ao julgar a imagem de cabeça para baixo, o fotógrafo precisará se ater não ao significado do que ele enquadra, mas sim à sua forma visual concreta, onde os objetos são apenas elementos da composição do quadro.
A aproximação um tanto improvável do fotógrafo americano com os irmãos franceses é ilustrativa, pois Viagem aos Pirineus é, até certo ponto, um filme anti-semântico. Seu ritmo de comédia screwball faz associações absolutamente disparatadas, ao mesmo tempo em que oferece falsas pistas para leituras metafóricas. Para se chegar ao filme, é preciso aprender a ler de menos. Os que tendem a ler demais ficam, logo, para trás: não há articulação alguma entre o arroubo ninfomaníaco de Aurore Lalu (Sabine Azéma), o homem que a persegue vestido de urso, os monges da felicidade que a conhecem na floresta, ou mesmo a troca de corpos (sim, exatamente como em Se Eu Fosse Você – mas que aqui é apenas uma entre várias situações estapafúrdias) dela com o marido (Jean-Pierre Darroussin), que vem logo após os planos invertidos dos pirineus. Mesmo enquanto símbolo dessa inversão física, as montanhas são signo que dependem apenas de sua visualidade, sua correlação de espírito.
Qualquer leitura que busque estabelecer relações entre as diversas minitramas de Viagem aos Pirineus passará ao largo do filme, pois o que parece importar aos irmãos Larrieu é, precisamente, a falta de conexões. Não é à toa, portanto, que o casal de personagens seja, dentro do filme, um casal de atores; ou que o urso seja, enfim, um homem vestido de urso, que o filme nunca mostra fora da fantasia – mas que aparecerá fumando, urinando em pé, entre outras ações humanas. Ou mesmo que, ao longo do filme, Jean-Pierre seja confundido diversas vezes com André Dussolier – parceiro de Azéma nos filmes dirigidos por Alain Resnais, que tem como única semelhança com Darroussin a gestalt do sobrenome. Pois o que fascina os diretores parece ser justamente a representação abismática, onde narrativas estapafúrdias se embolam, e levam as personagens sempre para os caminhos mais improváveis.
Não existem, portanto, metáforas, simbolismos, ou prova dos 9 que o filme não desmonte; Viagem aos Pirineus parece se interessar pelo cinema enquanto produtor potente de situações. Estamos, afinal, diante de um filme que se encerra com sua mais expressiva frase: “Eu sou apenas um ator”. Depois disso, o casal entra no carro e larga as malas para trás. Viagem aos Pirineus não pede nada além disso do espectador: que embarquemos, todos, deixando nossas bagagens para trás. O embarque na Viagem depende, portanto, do envolvimento com esse incessante ritmo farsesco – que, mesmo dentro de sua irregularidade, se sustenta ao longo da projeção com inegável graça.