Publicado originalmente na Cinética em Abril de 2009.
Os últimos dias de um lutador
Logo no início de O Lutador, seguimos os passos de Randy “The Ram” Robinson (Mickey Rourke) numa câmera que o enquadra pela nuca. Embora este tipo de plano tenha se tornado uma das convenções usadas por quase todo cineasta que queira para si o selo de “filme de arte” no circuito contemporâneo, a maneira de caminhar, a atmosfera cinzenta e a vegetação fria que circula o trailer de Randy fazem pensar em um filme, uma caminhada e uma nuca específicas. As coisas ficam ainda mais claras quando, mais ou menos no meio de O Lutador, ouvimos este diálogo entre Randy e Cassidy/Pam (Marisa Tomei):
Randy: Goddamn they don’t make em’ like they used to.
Cassidy: Fuckin’ 80’s man, best shit ever!
Randy: Bet’chr ass man, Guns N’ Roses! Rules.
Cassidy: Crue!
Randy: Yeah!
Cassidy: Def Lep!
Randy: Then that Cobain pussy had to come around and ruin it all.
Cassidy: Like there’s something wrong with just wanting to have a good time?
Randy: I’ll tell you somethin’, I hate the fuckin’ 90’s.
Cassidy: Fuckin’ 90’s sucked.
Randy: Fuckin’ 90’s sucked.
De fato, é raro encontrarmos filmes que assumam um diálogo frontal e direto com outra obra que lhe seja minimamente contemporânea que não seja pela paródia ou a citação – registro que agrupa desde Todo Mundo em Pânico (2000) e similares, até a inserção de Mal dos Trópicos (2004) em Na Guerra (2008), de Bertrand Bonello. Pois, com uma clareza que não víamos desde a olhada de Clotilde Esmé para a câmera que confrontava Bernardo Bertolucci em Amantes Constantes (2005), Darren Aronofsky dá nome à obra que mais assombra seu O Lutador. Os Últimos Dias (Last Days); filme de Gus Van Sant, de 2005, livremente inspirado nos dias finais de vida do líder da banda Nirvana, Kurt Cobain. Só que, diferente de Garrel com Os Sonhadores (2003), Aronofsky não parece querer responder ou contra-argumentar Os Últimos Dias. Sua menção, porém, clareia algumas das questões centrais de O Lutador; seus méritos, seus incômodos e, principalmente, sua inserção tanto como obra cinematográfica, quanto como discurso sobre um certo estado de coisas aguçado pela cultura pop das últimas três décadas.
Para pensar melhor sobre isso, voltemos ao ponto de partida do filme de Van Sant. Em Os Últimos Dias, ele dribla a possibilidade do biopic estrito (embora Cobain seja mencionado como inspiração nos créditos finais, a personagem do filme ganha o nome de Blake) para apreender um estado; mais precisamente, uma maneira de estar. Blake é o ser desconectado (ou, aparentemente, que se desconecta) do mundo ao seu redor. Como em todo filme de zumbi, se movimentar não necessariamente significa estar vivo, e é só isso que vemos Blake fazer: mover os músculos, de maneira torpe e desgarrada. Mas Os Últimos Dias não é apenas movimento, e há dois momentos pontuais em que Van Sant estabelece uma instância discursiva (e não narrativa – camada que o filme parece sempre se esforçar por esvaziar). Primeiro, quando Kim Gordon, baixista da banda Sonic Youth (não à toa, uma das maiores influências do Nirvana), pergunta a Blake se ele pede desculpas por ser um clichê do rock’n’roll. Segundo, quando um dos jovens que rondam pela casa ouve, em vinil, “Venus In Furs”, do Velvet Underground.
Esses dois momentos são essenciais, pois neles a preocupação imagética do filme se torna abertamente uma questão. Antes de mais nada, por estabelecer o clichê como morte: se vemos em tela um morto-vivo, é porque Kurt Cobain sucumbe na luta contra a redução de sua própria imagem – daí seu espírito flutuar, quase transparente, restando apenas a imagem sem alma, em todo o seu peso e inércia, nos planos que entrecortam os créditos finais. Pois se ver transformado em um estereótipo (a rigor, um tipo gráfico para produção em série), uma imagem que não se tem possibilidade de controlar, é se ver reduzido, feito algo específico, incompleto em aparência de completude (lembremos da apatia de Blake diante do clipe do Boyz II Men que passa na tv). A imagem construída para Cobain o transformara em um clichê, e virar um clichê é morrer. Aprisionar Kurt Cobain em uma outra imagem – mesmo que ela se escore em hierarquias particulares de justeza – seria compactuar com seu assassinato, e por isso Os Últimos Dias se mostra inapreensível para além da fantasmagoria de sua própria composição (característica que o aproxima de Não Estou Lá, de Todd Haynes).
Há, porém, outro parâmetro a se considerar, que vem com o Velvet Underground no segundo momento citado. Pois eles – com a parceria inestimável de Andy Warhol – foram talvez a primeira banda underground a assumir a performance como elemento de construção cênica, e basta passar os olhos pelos últimos parágrafos de Mate-me Por Favor, radiografia do punk escrita por Legs McNeil e Gilliam McCain, para perceber que a raiz daquele momento sempre foi iconográfica (desejo, aliás, bastante claro no filme de Gus Van Sant): Elvis Presley. O Velvet Underground é marcado pelo abraço consciente e construtivo da imagem em sua efemeridade; não à toa, a movimentação em torno da banda era chamada de “cena” – termo hoje já bastante cristalizado no vernáculo pop, que aproximava a vivência da representação. Mas, se a presença de Kim Gordon acentua, no plano de “Venus In Furs”, traços de uma linhagem, o filme de Van Sant percebe também que algo precioso mudou entre 1967 e 1994. O que teria maculado a performance no meio desse caminho, a ponto de Kurt Cobain usá-la (pois negar esse uso seria ingênuo) no sentido inverso de Lou Reed, buscando desconstruir as grossas camadas empilhadas na gênese do punk? Entre estes dois pontos, flutua exatamente a década de 1980.
Do escape do clichê ao cinema vintage
De certa forma, é a partir dessa cronologia que Darren Aronofsky revive Os Últimos Dias. O Lutador é um filme sobre o que permanece dos anos 1980, duas décadas depois. A década de 1990 e seus ícones aparecem, aí, como um acidente de percurso que as personagens não podem evitar, e que afeta a sua sobrevivência para além de um momento de plenitude existencial. Pois se Kurt Cobain “estragou tudo” (como se diz no filme), é por ter provocado uma cisão profunda com a mentalidade que lhe antecedia, e essa era justamente a que esvaziou – em um duplo movimento clássico de negação histórica do momento anterior – as ferramentas de Lou Reed e seus contemporâneos: o uso consciente da imagem como performance fora reduzido ao clichê. No Velvet Underground a imagem era um elemento de soma, não de redução, que expandia o número de significados da combinação dos diversos signos.
Os anos de 1980 que interessam a Aronofsky são os da performance inchada e facilmente decodificável, em que os longos cabelos precisam ser sempre tingidos, como os corpos são modificados pelos anabolizantes e o bronzeamento artificial. Randy “The Ram” – o homem inventa um nome para negar o seu de batismo – sente-se mais confortável como personagem do que como pessoa real. Mas é dos destroços do estrago provocado por Cobain que Aronofsky constrói O Lutador: a imagem de Ram está cristalizada no passado, e só pode ser alcançada em uma relação extremamente mediada. Por isso existe, no filme, a preocupação constante de contrastar esses dois regimes imagéticos. Depois de Cobain, a imagem que Randy tem a oferecer não tem mais função no presente (lembremos, aqui, da cena em que ele tenta vender uma coletânea em VHS dos momentos antológicos de sua carreira); resta sobreviver de sua própria ruína.
A operação, porém, se torna um tiro no pé, pois passar por Cobain é, para Aronofsky, passar pelo filme de Gus Van Sant; e esse trajeto evidencia as diversas fragilidades deste que é seu melhor filme. É ele, porém, quem muito conscientemente provoca essa mediação, evocando ferramentas caras e facilmente associáveis ao cinema de Gus Van Sant: desde o citado balé de nucas até signos mais claros, como o video game (junto com o boneco feito à sua imagem, momento mais forte em que Ram mostra o orgulho com que se reconhece um estereótipo) e, principalmente, a maneira como ambos os realizadores constroem suas narrativas como parábolas religiosas. Onde, em Os Últimos Dias, tínhamos a sombra de cordeiro que os jovens mórmons atiravam sobre Blake, aqui essa construção é mediada por outra camada imagética: a menção de A Paixão de Cristo (2004), filme de Mel Gibson, pela personagem de Marisa Tomei. Esse último exemplo começa a revelar a construção de O Lutador como um produto de terceira mão: assim como não se faz uma parábola bíblica sem passar pelo cinema, não se pode pensar O Lutador sem passar por um outro filme, uma outra imagem que o assombra. O problema maior, nesse sentido, é que Aronofsky reduz o empréstimo de recursos, muito expressivos nas mãos de Gus Van Sant, ao que eles têm de mais epidérmico.
Há, aí, uma estranha coincidência de olhares com sua personagem, pois Aronofsky usa essas ferramentas sempre pelo clichê, o pastiche – justamente a declaração de impotência diante de algo já tido como definido e imutável. Mas a aparência não é a essência e, por isso, onde havia, em Os Últimos Dias, movimentos que espiralavam no vazio, aqui as mesmas ferramentas geram sentidos absolutamente opostos. O Lutador troca os inúmeros feixes de sentidos desviados no filme de 2005 por paralelismos e operações de dramaturgia que se fecham em um único sentido. É o caso, por exemplo, da oposição de Randy e Cassidy – ele que encontra verdade em um nome inventado (Ram) de sonoridade próxima ao nome real que ela esconde (Pam); ele, que vive para a performance,ela, uma performer por sobrevivência; um homem que modifica o corpo para congelar o passado, e uma mulher que é agredida por não tentar esconder sua idade. Ou também da dobra temporal, labiríntica em Os Últimos Dias; de causa e efeito em O Lutador. Ou, ainda, do desvio mais gritante na edição de som: enquanto Gus Van Sant descolava o som da diegese da cena para produzir sentidos vaporosos e quase abstratos, o mesmo recurso é utilizado por Darren Aronofsky com fins dramatúrgicos estanques – do que o maior exemplo é o retorno dos gritos da platéia quando Randy entra, pela primeira vez, no balcão de frios onde começará a trabalhar. Aronofsky obriga o espectador a conectar pontas que, assim, não podem ser encaixadas com outros pares.
Com esse jogo de camadas, o que temos não é uma maior complexidade, mas sim um distanciamento que se torna, por fim, paródico: O Lutador é um filme vintage – imagem que ele assume com a visita ao brechó (em que a personagem de Randy usa, ironicamente, uma camisa de flanela xadrez), onde mais uma vez as imagens de dois momentos históricos da cultura pop serão contrastados em sua superfície (o casaco verde brilhoso que Randy escolhe para sua filha, e a palidez monocromática preferida pela jovem). Se há uma vida notável na personagem de Mickey Rourke (em um trabalho de ator realmente irrepreensível), é interessante como a reprodução estrutural de momentos de Os Últimos Dias condena essa personagem à morte. Pois enquanto no filme de Gus Van Sant o suicídio é o momento em que a alma se liberta de um clichê, Aronofsky faz exatamente o contrário ao arremessar o desejo (que seja um desejo de esvaziamento, pouco importa) de imagem de sua personagem para fora do quadro. Pois a obra vintage, como toda paródia, é uma apropriação vampiresca que reduz uma construção estética autêntica a uma casca de aparência. E que, a despeito de seu encanto passageiro, nasce já obsoleta, sombreada pela escolha original de não ser mais que passageira.