Publicado originalmente na Cinética em Abril de 2009.
Resnais sempre o mesmo: novo
Logo ao fim do primeiro número musical de Beijo Na Boca, Não, Faradel (Daniel Prévost) olha para o espectador e diz ter inventado a liquidação mencionada na canção só para se livrar das coristas que o acompanhavam na cantoria. A confissão, feita diretamente ao espectador, gera um primeiro estranhamento: salvo engano, é a primeiríssima vez nos 70 anos de carreira de Alain Resnais em que a diegese é quebrada. Pois embora Resnais seja muito facilmente associável (com justeza, mas também um tanto de redução) aos jogos de estrutura narrativos – sentimento de filmes tão distintos quanto O Ano Passado em Marienbad (1961) e o díptico Smoking/No Smoking (1993) – seu interesse sempre foi construir um universo diegético fechado, sem ranhuras ou fragilidades, em que a questão estrutural se revertesse, sempre, para a própria solidez diegética. Até mesmo em Mélo, filme que inaugura a fase teatral que dura até hoje, a sobreposição de meios funciona sempre de maneira complementar, nunca se tornando assunto. Lembremos do plano de Mélo (1986) em que a quarta parede é exposta, para quebrar a expectativa da configuração teatral onde a quarta parede seriam as poltronas dos espectadores.
Aqui temos um jogo de máscaras parecido, mas dessa vez o interesse pelo teatro – ainda central – está não só na natureza da representação, mas sim na natureza do texto. Pois Beijo Na Boca, Não traz a opereta que André Barde e Maurice Yvain escreveram em 1931 diretamente para 2003, sem atualização de questões ou adaptações de texto significativas. O filme é, portanto, o ruído produzido pela fricção dessas duas épocas, esses dois olhares, esses dois meios. Beijo Na Boca, Não estabelece uma relação extraordinariamente direta com o público, mas de uma considerável dificuldade crítica. Pois, por mais que se pense em inúmeras chaves possíveis de aproximação com o filme, cada uma delas parece já solidificada em algum momento anterior da carreira de Resnais.
O contraste do cinema com o teatro já era central em Mélo; a leveza musical dava o tom em A Vida É Um Romance (1983) e Amores Parisienses (1997); a representação como questão e os limites da cena nos levam a Smoking/No Smoking (lembrado, também, pelo timing cirúrgico dos atores); a luz como matéria moldável remete a Amor à Morte (1984) – filme em que a abordagem na adaptação (no caso, de uma partitura musical) também era determinante para o resultado; o humor a partir das diferenças culturais entre a França e os EUA era o mote de I Want To Go Home (1989). Esquartejado assim em palavras, Beijo Na Boca, Não pode parecer produto de um diretor já acomodado em seu próprio universo, em uma espécie de auto-homenagem que não faz mais que repisar questões que ele próprio já esgotara. É preciso lembrar, porém, que mesmo nas tentativas menos bem sucedidas (caso de A Vida É Um Romance e Amores Parisienses – e, definitivamente, não o caso deste filme), Alain Resnais nunca pecou por falta de ousadia. A cada filme ele traz um elemento novo à encenação, que podem ir do cartoon em I Want To Home, aos ensaios científicos em Meu Tio da América (1980) – que, aqui, são alvo de saudável zombaria.
Existe, sim, um fator que é único a Beijo Na Boca, Não, que é, de fato, a conversa com a câmera. Mas o surpreendente é que a leveza que flutua sobre as piscadelas metalinguísticas de Beijo Na Boca, Não revela uma armação um tanto mais complexa. Pois, ao quebrar a diegese, Resnais produz um paradoxo: ao mesmo tempo em que incorpora esse extracampo à representação, essa incorporação só a torna mais sólida. Quanto mais aquela cena é exposta enquanto tal, mais somos envolvidos por sua teia de dramaturgia. O desafio crítico está, muito, aí: como Resnais consegue desmontar um universo diegético e, ao mesmo tempo, torná-lo ainda mais sólido? Muito disso pode ser atribuido aos desempenhos excepcionais dos atores (Sabine Azéma e Pierre Arditi, sim, mas também Jalil Lespert, Isabelle Nanty e Darry Cowl), e mesmo ao fio do texto de Barde e das canções de Yvain – fatores que são determinantes, e que norteiam muitos dos prazeres desse encontro. Mas, para Resnais, a questão central é sempre a mise-en-scène, e ela que nos oferece a resposta mais contundente para essa inquietação.
Se em Smoking/No Smoking Resnais se interessava justamente pelas entradas e saídas de cena do teatro, são elas que marcam os limites do cinema em Beijo Na Boca, Não. Isso fica claro tanto no fade para o próprio plano que marca as saídas de cena de Faradel (sempre ao som de uma revoada de pássaros), quanto na possibilidade de Gilberte (Azéma) desmaiar na cozinha e já cair deitada em outro cômodo. Ou mesmo na angulação de câmera que coloca um par de chifres sobre a cabeça de Arditi. Esses saltos discretos são essenciais, pois é ali que se produz a representação. O que faz desse encontro entre cinema e teatro tão particular nas mãos de Resnais é, justamente, ele se construir no limite entre os dois – espaço em que ele não é mais nem um, nem outro, mas sim uma coisa nova. Espaço esse que o lançamento, mesmo atrasado, de Beijo Na Boca, Não vem reforçar como um dos mais agradáveis e estimulantes de se estar.