Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2009.
O afeto do esvaziamento
É bastante acertada a escolha de Felipe Bragança e Marina Meliande de revelarem a especificidade do modo de produção de A Fuga da Mulher-Gorila (realizado em 8 dias, por uma equipe mínima que carregava apenas o que cabia em uma kombi que, por sua vez, era, ao mesmo tempo, carro de produção e objeto de cena) apenas nos créditos de encerramento. Se viesse antes de o filme começar, a informação talvez desse margem – como muitos apontaram, independente de justiça, a respeito da carta de intenções do B.O.A.A. que Domingos Oliveira usou como abertura de Carreiras (2005) – para ser interpretada como um equivocado pedido de desculpas, uma justificativa para uma suposta precariedade assumida pelo filme com plena tranquilidade. Ao fim, a cartela de encerramento ganha um tom que não é oposto, pois isso seria partir de uma mesma lógica. Mas, diferente, ela ratifica uma entrega absoluta, um sentimento de criação conjunta que estava impresso, mas não exatamente explicado, no filme que acabávamos de assistir. Existe, portanto, uma obra que se oferece como acabada (e não fechada), com pés que sustentam o peso de seu próprio corpo.
A opção por minimizar a produção é não somente uma posição política, mas sobretudo uma questão estética: A Fuga da Mulher-Gorila é fruto da crença na leveza, no embarque, no prazer da realização como matriz para um efeito artístico. Para não esvaziar sua proposta, é preciso que essa entrega não contemple sua própria existência, mas que seja apenas um método, uma maneira de construir a obra de arte. Construir, nesse caso, é palavra importante, que A Fuga da Mulher-Gorila parece determinado a abraçar. Temos duas artistas itinerantes (Flora e Morena – nomes das personagens e das atrizes) errando pelos cacos do mundo, viajando na kombi roubada na qual transportam o cenário do show da mulher-gorila. A prevalência dos espaços não-edificados, parcialmente demolidos ou despidos de funções, funciona como uma tela em branco; o mundo não faz sentido algum, e isso é maravilhoso e perverso.
Esse mundo desértico e abandonado é, ao fim e ao cabo, o próprio cinema. A Fuga da Mulher-Gorila faz um complexo jogo de espelhamento, que se torna ainda mais forte por não ser auto-evidente – o que faria do filme apenas um registro de seus princípios de realização. Assim como as personagens, a equipe também vaga pelo mundo em uma kombi junto com os aparatos de um espetáculo, e procuram, nesse trânsito, encontrar espaços onde essa transformação – apresentada sempre em planos médios ou fechados, recortada de seu entorno – possa ser realizada. Ambos partem de um mesmo estado de insatisfação e inquietude (mais tarde descobriremos que Morena abandonara um filho recém-nascido para cair na estrada), buscando, na realização artística do dia-a-dia, a satisfação do agora.
A atividade específica é, também, extremamente reveladora: a transformação da mulher em aparência de gorila funciona por um jogo de espelhos. Há, aí, um comentário sobre o cinema: pegar uma matéria comum, à qual as vistas já estão acostumadas, e, com um truque, fazê-la parecer se tornar outra coisa. A mulher, imagem exuberante e comportada, destrói seus limites em potência selvagem e indomável, um corpo em movimento de indócil brutalidade. A partir da mulher, uma fantasia. A Fuga da Mulher-Gorila é, portanto, um filme assumidamente afeito a um cinema de construção, onde o espaço vazio é o convite ao preenchimento, e o real – aparentemente enfatizado pela mobilidade absoluta de câmera e vetores em quadro – é um labirinto de rotas de fuga que desembocam no trabalho com o gênero, nos escapes para as canções, na deformação da palavra.
Nesse sentido, é essencial o encontro das meninas com Alberto: ao fim de uma bela sequência de panorâmicas, vemos o rapaz praticando para um teste de ator, repetindo a frase “Não, não, ele está com uma arma!”. A repetição, por ele e por elas, é re-moldada em diferentes entonações, tateando como a deformação da voz (a forma) altera o significado das palavras. O apreço pela declamação, bem ao modo do tratamento do texto no cinema de João César Monteiro (O Último Mergulho, principalmente), é mais um recurso para esculpir um mundo, usando a vida como matéria-prima. A arte precisa modificar o que ela vê pois, como disse Jia Zhang-ke em entrevista concedida ao próprio Felipe, aqui na Cinética, “em muitos momentos, a intervenção ‘surrealista’ é muito mais verdadeira para essa expressão do mundo”. É ela a única capaz de transformar a mulher em gorila, a palavra em poesia, a fala em canto, a paisagem (aqui, apocalíptica a beirar a ficção científica) em cena, as linhas em composição.
A vontade de construir sentidos não é, porém, desvio de pretensões anacrônicas. Mais do que isso, é o confronto das personagens com um mundo desprovido de sentidos ou julgamentos pré-estabelecidos. A evidência mais clara desse sentimento está no fato de A Fuga da Mulher-Gorila ser, a rigor, um road movie. Apesar de a estrada ser a metáfora mais óbvia para um arco dramático de uma tradicional narrativa de Pícaro (a personagem que sai de um lugar para chegar a um destino, passando por uma jornada de engrandecimento), aqui a jornada é o seu próprio sentido. Quando, próximo ao final do filme, Flora diz que elas precisam comprar gasolina, Morena rebate: para ir aonde? Se a ausência de destino pode parecer um tanto trágica, ela é, também, a liberdade de poder declarar o destino apenas quando surgir a sensação de já tê-lo alcançado. Os olhos se voltam para seu imediato, em uma vontade de arder em chamas, de se consumir em sua própria fome. A arte seria a própria realização artística, mas o apreço pela construção faz dessa fuga um processo restaurador. Mais do que simplesmente registrar um sentimento esvaziado, ela é a criação de uma obra que, ao se apresentar para o espectador, oferece a possibilidade de preencher esse vazio com o coração que lhe era original.
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