Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2009.
A histeria da performance
“É mais crível quando se vê a histeria”. Essa frase, dita em uma das reuniões de equipe filmadas em Filmefobia, acaba sendo esclarecedora tanto sobre o filme de Kiko Goifman, quanto sobre a estréia de Matheus Nachtergaele na direção, os dois filmes exibidos curiosamente em sequência no segundo dia da programação de Tiradentes. Ambos são filmes extremamente calcados em um efeito de performance, que trabalham a cena a partir da expansão máxima (sempre buscada, nem sempre alcançada) do corpo no espaço.
Em Filmefobia, o estudioso de cinema Jean-Claude Bernadet interpreta um documentarista chamado Jean-Claude , que busca obsessivamente concretizar, em filme, a idéia que sua personagem tem de que a única imagem verdadeira seria a do fóbico diante de sua fobia. Em A Festa da Menina Morta, uma comunidade ribeirinha do Amazonas é palco de um jogo de poder, fé, misticismo, terror e dor. Esse jogo se constrói como espetáculo, onde o poder é determinado pelo grito mais alto, o tapa mais forte, a presença mais intimidadora. Filmes radicalmente diferentes em suas intenções e armações, mas que se cruzam nesse interesse comum pela expressão amplificada e histérica como melhor representação de uma suposta autenticidade.
Curiosamente, essa intersecção central aos dois filmes é, também, o marco de onde eles divergem. Em A Festa da Menina Morta, a performance é a ferramenta do drama. Em um espaço dominado por relações de poder, Nachtergaele parece menos interessado na natureza dessas relações, e mais em criar imagens que traduzam simbolicamente os atos de coerção que garantem essa autoridade, esperando extrair disso alguma força estética. Isso explica os planos dos animais abertos, expostos visceralmente, em um comentário que não visa – como em Buñuel ou Stroheim – compreender as reações humanas a partir do comportamento animal; mas sim demonstrar, novamente, a relação desigual dos homens com as criaturas (humanas ou não) que os cercam.
A Festa da Menina Morta trabalhaessa constante reiteração naturalista, onde toda imagem é milimetricamente calculada para demonstrar novamente um conceito do qual ela deriva, e todo plano parece servir à mesma idéia já esgotada no plano anterior. O maior sintoma desse efeito acaba sendo sua construção circular: ao terminar seu filme com a mesma imagem que começa, Nachtergaele instala personagens e espectadores em um fatalismo trágico e desgastante. Assim como a decupagem, a performance se esvazia, pois ela é, também, o meio para se chegar a uma aparência de veracidade exterior ao espetáculo. O interesse pela performance não se encerra em si mesmo, mas sim funciona como ferramenta para se chegar a um efeito de estilização – no caso, igualmente próximo ao hiper-naturalismo de Cláudio Assis, e à espiral neo-barroca de Luiz Fernando Carvalho – que busca se fidelizar ao olhar deformador de uma personagem.
Essa estilização é constante tanto no choque entre pretos e pratas da fotografia de Lula Carvalho, quanto no estado de ebulição constante em que se colocam os atores. Se existe um cansaço resultante dessa estratégia gritalhona e um tanto epilética, não é por uma inconsequência inconsciente do realizador; muito pelo contrário, pois o universo construído por Nachtergaele em torno de seu Santinho (Daniel de Oliveira) se sustenta sobre bases firmes, plantadas em inegável coerência. Há, no filme, um universo artístico aberto à relação com seu público; a questão que determina o fascínio ou a repulsa depende de cada espectador se sentir, ou não, parte dele. Nesse sentido, é particularmente expressivo que os dois planos mais fortes do filme sejam aqueles que esvaziam a coreografia de seu enxerto dramaturgico, filmando o movimento pelo movimento: as “trigêmeas alienígenas” que animam uma festa e, muito expressivamente, não são nem trigêmeas, nem alienígenas; e os rapazes que dançam break, em plano de incrível força visual.
Filmefobia parte de um princípio oposto, pois, embora ele busque na performance um efeito (a imagem, seja ela “falsa” ou “verdadeira”), ela é datada de uma improdutividade que lhe é engrandecedora: a performance se encerra em si mesma. Existe, claro, um caráter rarefeito imposto às camadas de encenação que é difícil de se contornar como tensão crítica. Mas, talvez, a melhor relação possível a se estabelecer com ele seja a da negação: mais importante do que determinar as fronteiras entre a cena e a manifestação “pura” da fobia, Filmefobia é uma construção de performances. Nesse sentido, é cabal a participação de Zé do Caixão (e não Mojica), buscando, na ilha de edição, a verdade expressiva de momentos do material filmado.
Mais do que compreender a essência que determina a força de uma imagem, Filmefobia busca a expressão dessa força na imagem acabada, independente de ela vir de uma raiz compulsiva, ou figurativa. O espelhamento entre o filme e a realidade que lhe é externa é, por sua vez, externo ao filme. Não há jogo com o espectador, pois o jogo pressupõe a possibilidade de haver vencedores. É interessante, portanto, que o nome de Jogo de Cena tenha surgido mais de uma vez no debate acerca de Filmefobia realizado na Mostra. Interessante pois, para além de semelhanças mais epidérmicas, Kiko Goifman vai em sentido oposto ao de Eduardo Coutinho: em Jogo de Cena é essencial para o funcionamento de sua estrutura que o espectador perceba que algumas daquelas personagens são atrizes (daí a escalação de Andréa Beltrão, Marília Pêra e Fernanda Torres – rostos onipresentes na memória popular do audiovisual brasileiro); em Filmefobia, o possível reconhecimento dos atores (Kiko como Kiko; Jean-Claude como Jean-Claude) instaura camadas dispersivas, produzindo relações que giram no vazio.
Sob essa ótica, o filme de Goifman estaria muito mais próximo da massa indistinta de imagens de Serras da Desordem, de Andrea Tonacci – construção em que o livre trânsito entre uma gama variada de registros gera um discurso que é possível justamente por sua indistinção. Esse vazio induzido pelas camadas de interpretação redireciona, porém, os olhos do espectador às imagens que são realmente centrais – daí a estilização absoluta dos instrumentos e aparelhos usados nos experimentos, peças onde a fusão entre o lúdico e o horror define tanto a idéia de fobia (o pavor diante de algo não convencionado como pavoroso por aquela sociedade – palhaços, anões, botões) como o jocoso tom laboratorial das performances. O perigo controlado e imageticamente produtivo faz de Filmefobia uma espécie de trem-fantasma da fotogenia – algo que as fotografias incluídas na montagem só fazem ressaltar. A palavra, o discurso do filme dentro do filme, só se apresenta para o testemunho de sua própria ruína. O que resta são as imagens, e em ambos os filmes exibidos nesse segundo dia de Mostra, elas são mais fortes quanto mais auto-conscientes se mostram de sua plasticidade performática.
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