Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2009.
Estética da camaradagem
O longa-metragem catarinense Sistema de Animação parece desmentir todas as impressões que começavam a se cristalizar sobre a programação da 12a Mostra de Tiradentes. Se até esse momento os filmes pareciam se destacar mais por um rigor conceitual dos projetos, do que por uma vitalidade real em tela (caso de Filmefobia, A Festa da Menina Morta, Acácio e A Casa de Sandro – mesmo que variando em medidas), Sistema de Animação faz o caminho contrário. Alan Langdon e Guilherme Ledoux traçam, nesse primeiro longa, um perfil bastante intuitivo do músico Toucinho – baterista que, após um breve período de sucesso na juventude, se entregou à música com uma voracidade selvagem.
Sujeito igualmente excêntrico e genial, Toucinho mora em uma casa sem energia elétrica em um canto de Florianópolis. Apesar de ser um mito entre os músicos locais, sua carreira atual se resume a apresentações pouco frequentes em um bar de música instrumental. Estruturalmente, Sistema de Animação parece não ter pretensão alguma de pensar uma determinada forma de se relacionar com a personagem filmada. A liberdade ricocheteia: ao não ter um enfoque, o filme passa a ter todos os enfoques possíveis e imagináveis. Ao mesmo tempo em que tenta se ater ao agora, existe a necessidade de contar a biografia pregressa da personagem; assim como mantém o foco central na presença cênica exuberante de Toucinho, eles buscam entrevistar pares que possam legitimar sua escolha como objeto de filmagem.
A lógica que permeia o filme de Langdon e Ledoux é a de um fluxo ininterrupto de imagens, a partir de um registro de mútua confiança que produz um acesso extraordinário à personagem. A partir daí, a abordagem intuitiva se atém a duas linhas básicas: uma cronologia que guia minimamente as imagens; e uma confiança extrema na força da presença de sua personagem. Curiosamente, a presença expansiva e performática de Toucinho é, em diversos momentos, suficiente ao filme. Existe uma combinação bastante feliz de entregas (dos diretores e da personagem) que, nesse clima de latente camaradagem, dá ao filme um leve fôlego, com momentos de força real. Isso fica especialmente visível no mais expressivo plano de Sistema de Animação: a câmera pega carona no banco de trás do carro de Toucinho que, de repente, “encavala” a marcha. Ninguém além dele parece saber o que isso quer dizer, mas a câmera segue filmando, fixa, enquanto o músico sai do carro e tenta consertar o problema. Esses poucos minutos transformam, mesmo que temporariamente, Sistema de Animação em um meta-suspense. Percebemos, com clareza, que é Toucinho quem guia o carro do filme e que, se esse carro (essa performance) de repente encavalar, o filme nunca mais sairá do lugar. Se essa posição um tanto passiva borra qualquer linha mais clara de raciocínio a se acompanhar, a fé dessa entrega é, por sua vez, bastante comovente. Sistema de Animação é um típico filme de galera, algo raro no panorama de produção nacional que ganha, aqui e em A Fuga da Mulher-Gorila, uma iniciativa bastante vigorosa.
Não há traço da intenção, mais corrente no documentário moderno brasileiro, de se documentar um encontro; há, por sua vez, uma relação anterior entre realizadores e personagens que, saudavelmente, vai construindo o filme pouco a pouco, dando a impressão de que ninguém ali decidiu, em momento algum, começar a fazer um documentário. O que parece existir são fatias filmadas de uma relação que se prolonga para antes e depois do tempo diegético, mas que gera um arco dramático surpreendentemente bem delimitado. Nesse sentido, o paralelo mais acertado a se fazer com Sistema de Animação é com um outro filme musical: DiG! (2004), documentário em que Ondi Timoner tem, durante anos, um acesso extraordinário ao cotidiano das bandas Dandy Warhols e Brian Joneston Massacre, registrando a ascensão meteórica de uma das bandas, e a batalha diária e pouco frutífera da outra. São ambos filmes que parecem acreditar em uma dramaturgia espontânea do mundo, que parece vir como recompensa à paciência e perseverança dos documentaristas.
Embora Toucinho represente, claramente, a crença dos realizadores em uma pureza de integridade artística assumidamente romântica, existe um comentário curioso no título escolhido para o filme. O tal “sistema de animação” é uma expressão criada pelo personagem para traduzir um sentimento de harmonia com o mundo, e essa harmonia é algo que o filme – em sua torrente ininterrupta de cortes, ruídos e cintilações – evidencia como meta, mas não como possível. O ritmo da fala de Toucinho (como fica claro na forte sequência em que ele comenta a música de Hermeto Paschoal) é o do caos e, mais que isso, da impossibilidade de captura ou de escrita. O que existe, portanto, é o objetivo de um equilíbrio entre a ordem e a espontaneidade, algo que Toucinho parece perceber como artificial em sua vida. Em entrega ao acaso tão completa quanto desequilibrada, falta, ao filme, um sistema mais claro para organizar golpes tão fortes de animação.