Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2009.
O esvaziamento do afeto
A Casa de Sandro começa com seu mais sintético e belo plano: um sapo boiando, paralizado, em uma piscina. A câmera insiste na fixa observação e, aos poucos, as pernas do animal parecem se mover quase espasmodicamente. Depois de mais de um minuto, o sapo, como que despertado por uma energia emanada pela câmera, nada para a borda da piscina. O plano é essencial para além do maravilhamento (perceptível nas reações entusiasmadas da platéia), pois declara os princípios de interação que serão trabalhados ao longo de todo o filme: a abordagem do cinema como ferramenta de observação, mas de uma observação que contamina o que é filmado e estabelece, com isso, uma nova relação. A cena, portanto, é a seleção de um olhar sobre um mundo aparentemente adormecido que – pela espera, ou pela retroalimentação (dependendo da crença individual nessa operação) – se revelará para a câmera.
Em um primeiro momento, Gustavo Beck e equipe observam Sandro nos diversos ambientes de sua casa de fazenda. Interpostos aos “momentos-Sandro”, temos vistas de sua casa – essa sim, personagem que, estranhamente, dá título ao filme – e arredores, filmados, geralmente, com lentes mais abertas. Sandro, por sua vez, ganhará enquadramentos distanciados em tele-objetiva, extremamente bem compostos, mobilizados em panorâmicas de limites surpreendentemente bem delimitados para uma observação estritamente documental (lembrando, pela fluência e precisão, os documentários de Jia Zhang-ke).
A opção de lentes começa, porém, a derrubar a primeira relação exposta em seu título: casa e Sandro parecem raramente interagir, pois a tele-objetiva usada para filmar o personagem o isola em foco extremamente seletivo, desconectando-o do ambiente que o cerca. Esse ambiente aparece sempre mediando a filmagem – os objetos desfocados tomam, por vezes, o centro visual do quadro – mas o rigor plástico desse enquadramento não parece se construir como discurso. Há uma observação e ela é extremamente entrecortada, e isso é tudo que os quadros parecem querer dizer. Na primeira metade do filme, observamos Sandro em tarefas ordinárias com o mundo que o cerca, passando com um certo constrangimento pela relação com o exterior (as cenas à tv e ao telefone, onde o personagem não expressa qualquer vontade de se comunicar) e as pessoas à sua volta (o distante e único momento de interação com sua companheira ou a secura cordial para com sua empregada doméstica).
Essa certa indiferença do olhar faz lembrar Liverpool (2008), filme de Lisandro Alonso em que uma personagem vaga por um espaço sem conseguir concretizar relações que se apresentem como significativas. Em vez disso, temos uma personagem em errância letárgica, absorta na contenção de sua própria presença, observada sem indício mais claro de intervenção ou coerção por parte da câmera. Não há, aparentemente, vontade de construir um discurso a partir de Sandro para além da relação entre corpo e câmera, em planos sempre duradouros, sempre presos a um eixo físico, quase sempre distantes e mediados. Até que nos vemos em um ateliê de pintura. Sandro põe uma tela em branco no cavalete, e começa a riscar alguns quadrados em tinta preta. Acompanharemos, de maneira fragmentada, a confecção desta obra.
A revelação súbita de que Sandro seria um artista parece esboçar um primeiro traço de interesse por aquele universo: assim como o sapo tem seu tempo particular para sair do repouso, a obra-de-arte é fruto de um momento anterior que é ocioso enquanto produção artística. Os estágios de ócio que antecedem a pintura espelham o processo do filme, pois a banalização (a rigor, bastante saudável) da criação artística, a partir da abordagem conscientemente esvaziada na filmagem, reconfigura o que havíamos visto até então. A espera parece, enfim, se mostrar o tempo necessário para o sapo começar a se mover. Esse breve indício de discurso será, porém, complicado por um retorno posterior ao ateliê: Sandro pega um outra tela, já pronta, e começa a recobri-la com tinta branca. Em pinceladas de eterno retorno, a obra volta à aparência de um suposto primeiro estágio, onde tornaremos a aguardar o despertar de um mundo novamente sonolento, mole e entorpecido. Com esse movimento, Gustavo Beck parece trazer o discurso novamente para o plano da realização, onde o trabalho do artista se instala na montanha de Sísifo: a relação de afeto estabelecida na confecção de uma obra é mais importante do que seu resultado.
Essa relação, porém, é sempre coagida para a margem do quadro: um cochicho entre diretor e operador de câmera fora do quadro; o enquadramento da kombi que transportava a equipe; uma última e decisiva entrada em quadro pela equipe do filme, no jantar com Sandro que encerra o filme. Há, portanto, um inegável desejo de valorizar a relação – algo que, por si só, é um caminho bastante legítimo para o cinema, documental ou não. As opções estéticas feitas por Beck levam, porém, o filme para um entruncamento bastante problemático, onde o dispositivo de feitura parece substituir o filme. Estaria esse suposto afeto impresso na distância receosa assumida em sua estratégia de observação? Mais do que isso: o que apreendemos, de fato, dessa relação, para além do fato de sabermos que ela existe e foi conscientemente registrada por uma câmera?
Pois, se A Casa de Sandro é o registro de uma relação, a ausência de questões levantadas por essa relação leva a uma inevitável pergunta: seria ela especialmente digna de um registro, se as amarras desse registro (uma necessidade de se ater à cronologia da filmagem; a articulação entre equipe e Sandro, pontual demais para se tornar um ponto de fuga para o filme) parecem anulá-lo enquanto discurso? Seria todo registro, por mais rigoroso em seu conceito que ele venha a ser, uma obra de arte? Existe uma distância entre os grandes filmes de observação (indo de Lumière ao cinema de Wang Bing – passando por Don`t Look Back, Cocksucker Blues, In Public e tantos outros filmes) e o simples registro do mundo, e essa diferença vem da manipulação dos elementos do meio para uma expressão artística particular que está além desses elementos individuais. A obra-de-arte é fruto de uma contradição, pois ela precisa ser suficiente em sua autonomia, mas produzir algo (um sentimento, uma reflexão, uma idéia) para além de seu domínio. Falta a A Casa de Sandro justamente esse salto do conceito para o filme; do registro para a obra de arte; da integridade para o risco; da morosidade para o movimento. Aquele sentimento de contágio, construído no primeiro plano, parece, aos poucos, se esvaziar em uma posição realizadora que se contenta em registrar. É essa a diferença entre reportar o afeto, e construir um filme plenamente afetuoso.
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