Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2009.
Do desaparecimento
Em O Narrador, Walter Benjamin indica, usando como exemplo a obra de Nikolai Leskov, que a arte da narrativa oral estaria chegando ao fim. Mais do que isso, seu túmulo era cavado pelo jornalismo. Onde antes tínhamos os ensinamentos morais da experiência, agora restava apenas o esvaziamento seco e factual da informação. Troca-se, portanto, a vivência e a sabedoria pelo conhecimento. Essa ruptura tem se manifestado como questão central para boa parte do documentário brasileiro contemporâneo: está lá nas personagens de Eduardo Coutinho; na busca por Macunaíma em Chico Antônio (1983), de Eduardo Escorel; nos mundos em ocaso de O Fim dos Sem Fim (2001), de Cao Guimarães, Lucas Bambozzi e Beto Magalhães; ou no confronto da performance que se dá em Santiago (2007), de João Moreira Salles.
Nos Olhos de Mariquinha parte dessa mesma e atual premissa, que é pensar o documentário mais como uma narrativa oral do que como uma reportagem factual. O documentário seria, portanto, o último refúgio do narrador de Benjamin. O filme de Júnia Torres e Cláudia Mesquita deixa clara essa aproximação na escolha de sua personagem: Mariquinha é uma senhora que mora em uma favela de Belo Horizonte, tão conhecida em seu bairro que dá conselhos aos ouvintes de um programa de rádio. Além disso, sabemos que está perdendo a visão. A maior parte do filme é consagrada a ouvir Dona Mariquinha que, a partir dos acontecimentos que marcaram sua própria vida (o assassinato de um filho, por exemplo), nos indica seus caminhos de sobrevivência. Tanto em sua fala para a câmera, quanto na oralidade direta de seus comentários no rádio, a personagem parece tomada pelo desejo de comentar os acontecimentos com idéias que lhe são anteriores – seja por meio de provérbios, ou por generalidades cristalizadas ao longo dos anos. Ela vela por seu morro, seu mundo, olhando-o de cima, como uma espécie de guardiã.
“(A narrativa) tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária”, escreveu Benjamin. “Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas, se ‘dar conselhos’ parece hoje algo de antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis. Em conseqüência, não podemos dar conselhos nem a nós mesmos nem aos outros. Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada”.
A escolha de Mariquinha é, portanto, o centro do próprio filme. Assim como Benjamin, Júnia e Cláudia se apegam aos últimos traços de vida dessa modalidade de discurso como se ela já tivesse morrido – daí a existência de uma segunda câmera, que filma Mariquinha com a carga de memória da granulação do Super 8, em preto e branco. Existe, portanto, um certo encantamento por parte das diretoras na sobrevivência desse narrador, mas, ao mesmo tempo, esse encantamento é entrecortado pela consciência de sua exceção: Dona Mariquinha, figura extraordinária em um morro sem rostos, é a última de sua espécie. “A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção”, escreveu Benjamin. “Na realidade, esse processo, que expulsa gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo dá uma nova beleza ao que está desaparecendo, tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evolução secular das forças produtivas”.
Nos Olhos de Mariquinha perceberá, assim como Benjamin, o motivo da ruína desse discurso: o jornalismo, não só informativo, mas mais recentemente também justiceiro, agente supostamente ativo em uma terra sem leis. Nesse sentido, o momento mais expressivo do filme é quando as diretoras abandonam, mesmo que momentaneamente, sua personagem. Em um primeiro momento, encontram dois garotos que se apresentam como MC Colômbia e MC Nuguete. A câmera é assumida como vitrine de espetáculos, como chance de divulgação de um trabalho que é exterior ao interesse do filme, e que é apresentado com um discurso viciado nas obviedades de quem o consome. Em outro, um morador confunde a equipe do filme com uma unidade de produção jornalística, e pede para que eles filmem exemplos de abandono e descaso do poder público – fazendo da câmera não só testemunha, mas também farol de denúncias e injustiças sociais.
Ao se deixar instalar em uma comunidade, a câmera se flagra como ímã de impressões, onde passa a interessar menos ao filme uma idéia que ele tem sobre aquela população, mas sim a que moradores daquele lugar têm sobre sua presença. Dessa forma, as diretoras recortam Mariquinha como figura de exceção não só pela modalidade de seu discurso, mas também pela relação extremamente direta e multilateral que ela estabelece com a própria câmera. Esse estado de exceção é, ao fim e ao cabo, a consciência da morte – sentimento que, como concluía Walter Benjamim, é o centro de legitimação de qualquer narrativa. A morte não só de uma pessoa ou de um discurso, mas principalmente a de uma imagem que, caminhando para o fim do filme, conta os minutos de sua própria existência. Esse interesse pelo desvanecimento de uma relação oral com o mundo faz de Nos Olhos de Mariquinha um exemplo bastante bem delineado de uma certa corrente documentário feito hoje no Brasil, embora não encontre impulso suficiente para saltar desse saco de gatos.
Histórias de Morar e Demolições parte, também, da iminência de um fim. André Costa e sua equipe inventam uma produtora ficcional (de nome Caracol Filmes) e distribuem panfletos em áreas ameaçadas pela especulação imobiliária, oferecendo registrar os ambientes das casas das pessoas em vídeo. Este dispositivo é apenas um ponto de partida que logo será abandonado, na medida em que o filme se entrega às imagens de registro de quatro ou cinco casas diferentes.
É preciso, antes de tudo, problematizar as premissas de Histórias de Morar e Demolições. Comecemos pela delimitação de interesses no título, que gera uma cisão entre termos: de um lado, histórias de morar; do outro, demolições. Não há, portanto, interesse real pela modificação do espaço (edificar e demolir são rostos diferentes de uma mesma intervenção), mas sim pela idéia de habitação – o que, em si, gera um outro problema: por que o espaço deveria ser conservado arquitetonicamente se o que importa é o verbo? Será a memória exclusiva às casas? Não existe relação afetiva dos moradores de um apartamento com seu espaço? As lembranças estão condicionadas em um espaço qualquer, pois são uma projeção do indivíduo sobre ele. Se existe um vínculo real e ruidoso com o espaço público e coletivo – questão melhor representada no cinema por Tsai Ming-liang, no brilhante A Passarela Se Foi – o que diferencia uma casa de um lar? Por que vilanizar a especulação imobiliária (algo que o filme faz em um último plano bastante problemático – em que um operário de demolição comemora após derrubar a parede de uma casa) por destruir lares, se ela erigirá, também, outros lares?
Existe um romantismo frouxo na premissa de Histórias de Morar e Demolições (algo que contaminará, também, o trabalho de música do filme – como se a música da memória só pudesse ser lacrimejante) que lhe é prejudicial, pois desvia a atenção do espectador para falsas questões. Mas falsas questões podem, por sua vez, estimular filmes verdadeiros – procedimento que, para ficarmos nessa Mostra, se dá com Filmefobia, de Kiko Goifman. Histórias de Morar e Demolições nos dá, nessa estrutura escolhida, o trabalho extra de limparmos o filme de seus falsos artifícios para se buscar, com isso, um coração – algo solucionável quando, como é o caso, a disposição é maior que o enfado.
A disposição vem por uma iniciativa bastante acertada de método: uma vez manifesto o interesse, o realizador entrega uma câmera para que o morador registre os sons da casa. O resultado disso não é em nada extraordinário, mas a iniciativa sim, pois coloca as personagens em um estado de atenção intrínseco à atividade do documentarista, buscando memórias pela casa com a atenção que Joris Ivens e Mannus Franken esperavam pelas primeiras gotas de chuva em Regen (1929). A memória é, sobretudo, uma construção, e essa construção é incentivada pelo diretor. “Por que não tirei fotos da minha casa antes?”, lamenta uma das personagens. A resposta é simples, e expõe um problema mais grave em Histórias de Morar e Demolições: a memória é seletiva e espontânea. Por isso mesmo, ela só será conservada se for importante para alguém.
O muxoxo da personagem faz coro ao do diretor por apenas um grupo muito pequeno de pessoas ter se interessado em registrar suas casas em vídeo. Temos aí um caso clássico em que o artista projeta algo que lhe é caro sobre um mundo que não compartilha esse apreço; afinal, as casas são abandonadas porque as pessoas as abandonam – e podemos culpar a especulação mobiliária por isso, mas não pela suposta falta de apego que o diretor parece encontrar em algumas das personagens presentes. André Costa tenta, com a sugestão encarnada na Caracol Filmes, ressuscitar um desejo conservador em uma cidade que parece tomada por um sentimento progressista, que pode ser ou não natural, mas que existe. De fato, as razões para as pessoas não procurarem a Caracol Filmes são inúmeras; mas entre as que requisitaram o serviço, apenas uma delas tinha um registro imagético anterior (uma foto) da casa. Serão, essas casas, objetos de conservação? Mais complexo: será o registro audiovisual uma maneira efetiva de conservar esse passado?
Essas são perguntas que o filme levanta, mas não se propõe a responder, pois Histórias de Morar e Demolições está interessado nas pessoas, e não nos espaços. Daí que a relação seguinte se torne mais problemática: temos planos quase sempre estáticos de fatias das casas das personagens, por vezes cobertos por um comentário em voice over da personagem, por outros, embalados por dedos pingados em um teclado. A síntese feita a partir de imagem e som seria, por sua vez, a construção da memória: o sofá onde o avô falecido costumava se sentar; a cozinha onde alguém aprendeu a cozinhar; os aniversários; a parede marcada pelo contorno de um crucifixo invisível. Se existem momentos realmente tocantes – sejam eles visuais ou narrativos – nesse processo, a sua natureza resulta no problema mais incontornável de Histórias de Morar e Demolições: usar a arte como inventário. Essa tendência surge das ramificações mais problemáticas dos escritos para cinema de Gilles Deleuze – gerando, inclusive, uma nova abordagem de produção artística – onde a simples detecção de efeitos isolados substitui a sistematização entre esses vários recortes. O que temos são diversas imagens que, embora minimamente articuladas sonora ou visualmente, não conduzem a lugar algum que não ao seu próprio sistema. Com isso, Histórias de Morar e Demolições acaba esvaziando o objeto que se propõe construir (as casas e os depoimentos), pensando a memória à semelhança de um catálogo telefônico.