Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2009.
Retornos
“Cinema brasileiro contemporâneo em todos os sentidos”. O slogan da Mostra deste ano, que segue martelando no início das sessões, toma, nos filmes exibidos nesse terceiro dia, um rumo um tanto inesperado: para trás. Um retorno, mas não um retrocesso, pois parte de uma escolha que é tanto temática quanto formal: são, ambos, filmes voltados para o passado. Difícil saber até que ponto essa organização dos filmes em chaves de parentesco seja plenamente consciente por parte da curadoria ou evidencie apenas um impulso sistematizador de quem olha. Ainda assim, o terceiro dia da Mostra de Tiradentes complica a vontade de desatar o nó que entrelaça a programação, expandindo consideravelmente seu escopo com filmes que, embora complementares, se separam logo na raiz primeira da história mais tradicional do cinema.
Esse retorno ao passado não é somente referencial. Em construção que povoa a cena com a projeção de seres imaginários que olham diretamente para a câmera, Mistéryos remete, de imediato, ao Fellini de 8 1/2. Memória e imaginário se misturam ao mundo visível, fazendo do espaço um insólito salão para o baile dos mortos que Gilles Deleuze apontava no cinema de Federico Fellini. Não à toa, entre as outras referências de presença mais clara em Mistéryos (Alain Resnais e, sobretudo na intensa pictorialidade da fotografia de Alciro Barbosa, A História de Marie e Julien, de Jacques Rivette), a mais marcante é, também, herdeira de Fellini: David Lynch – cineasta de perversões clássicas, estampado tanto nas figuras espectrais que deslizam pela noite, quanto nas paredes borgonha do teatro de mágica, perto do final do filme.
Mistéryos é uma curiosíssima adaptação do universo literário do escritor paulista, mas radicado e recentemente falecido em Curitiba, Valêncio Xavier. Como aponta com precisão a crítica de Eduardo Valente, o filme flutua como um OVNI na produção cinematográfica brasileira. Isso se dá por os diretores retomarem uma matriz um tanto ausente na tradição brasileira: o cinema de trucagem de Georges Méliès. Logo no início do filme, a personagem de Carlos Vereza, alter-ego que carrega as iniciais do autor, olha para uma porta entreaberta. Dentro, três velas flutuam acesas em uma absoluta escuridão. A câmera, o olho do filme, faz um dolly em direção à porta; em vez de se aproximar das velas, adentra o negro que as separa. Existe aí uma filiação a um cinema que se interessa pela beleza do truque (que é o mistério criado por alguém, como diz a narração em off de Vereza), que é fascinante não só por ser rara, mas também quente e bastante bem executada.
Mistéryos revolve a memória de sua personagem, como em uma inversão de O Retrato Oval, de Edgar Allan Poe: pintar o que morreu é uma maneira de devolver a vida. Nesse sentido, a mais expressiva bifurcação dentro do filme é aquela em que o narrador encontra alguns dos rolos perdidos de Sapho – O Amor Entre As Mulheres, curta metragem erótico curitibano que, já absolutamente deteriorado, retoma, magicamente, sua imagem dentro do filme. Esse trecho é essencial não só por compor a vocação restauradora prática e existencial da personagem, mas principalmente por sublinhar a memória como seleção, como juízo a partir dos restos (as cenas de nudez frontal retiradas do filme por uma outra pessoa), onde o que permanece é, muitas vezes, aquilo que não interessou a seu dono anterior.
Carminatti e Merege parecem interessados justamente nessas lacunas, nesse espaço negro que se perde entre as velas. Essa lacuna é, no filme, sempre encarnada pela figura feminina: à maneira do Anjo da Morte interpretado por Virgina Madsen no A Última Noite (2006), de Robert Altman, Stephany Britto se apresenta como personagem-conceito; mulher-mistério que preenche os buracos deixados pelo tempo e a razão que, muito expressivamente, tem sua primeira aparição marcada pelo desaparecimento em um trem fantasma. O que intensifica o impacto dessa figura feminina é que a idéia de mistério será, ao fim, associada à morada do próprio narrador; casa que, como todo lar, tem seu dono marcado nos móveis e paredes. Com esse deslocamento, onde o grande mistério da existência retomará, ao fim, o aforismo de Rimbaud: eu é um outro.
Acácio, de Marília Rocha, é também marcado pela memória, mas a sua vem de outra fonte: Lumière. Após o excesso de mediações que marcava a relação da realizadora com as personagens de Aboio (2005), Acácio é tomado pelo desejo de tornar a imagem o mais transparente possível, reconhecendo que a ambiguidade aparece apenas mais discreta, mas até mais intensa, quando se percebe a maneira de se ver já aderida à imagem. Marília Rocha parte, portanto, de uma mudança de eixos bastante radical em relação ao seu filme anterior: onde antes tínhamos uma câmera tensa em dar conta do jogo de atrações e desvios entre a realizadora e o universo filmado (algo que coloca Aboio em um plano que é igualmente entregue à relação e ao desvario), agora temos um quadro extremamente receptivo aos sabores do mundo.
A proximidade com Lumière vem, portanto, do que existe de mais superficial e tocante em seu cinema: o desejo de registrar o movimento do mundo, seja o sol que desce ao poente dentro do quadro, a caminhada em profundidade para dentro da neblina, ou o barco que corta o horizonte da tela. Um espaço que expressa um tempo. Essa aproximação parece, por sua vez, vir das imagens produzidas pelo próprio Acácio, artista português migrado para o Brasil, com uma longa passagem por Angola: filmes e fotografias encantados com a exuberância das manifestações do mundo, como as viagens etnográficas (mas também turísticas) de Major Thomaz Reis. Por isso mesmo, Marília adota um protocolo pouco variante para filmar as conversas com a personagem e sua esposa, conferindo igual atenção a possíveis gracejos, lembranças e estórias que podem vir a surgir nesses encontros.
Surge aí um interesse em historicizar a trajetória particular das personagens, como se Marília buscasse em Acácio e Conceição uma vereda (à João César Monteiro) pessoal que é ignorada dentro da configuração histórica do país. “Vocês brasileiros não têm muito o que contar”, diz Conceição em uma de suas lembranças. Como qualquer imagem, aquelas produzidas por Acácio ao longo da vida dizem tanto sobre ele quanto sobre os espaços históricos (países, de fato) por onde ele passou. Existe, portanto, uma relação com a memória que é diametralmente oposta àquela vista em Mistéryos: enquanto lá o cinema é o terreno de projeções vaporosas, aqui ele é o concreto que gera relações exteriores à imagem. Não basta, a Marília, organizar ou sequer comentar as imagens feitas por Acácio; é preciso dar voz aos fantasmas, sem misturar a imagem da organização (as entrevistas) com as imagens comentadas.
Esse recurso é, muitas vezes, revelador: quando comentam um primeiro grupo de fotografias, Conceição se debruça avidamente sobre as imagens, enquanto Acácio as observa de braços cruzados, recostado na cadeira. Por meio de um jogo de ordenação (em dado momento vemos as imagens antes dos comentários; em outro, os comentários precedem as imagens), Marília Rocha vai demonstrando aquilo que só é sintetizado no rolo encontrado ao final do filme: a força bruta das imagens como expressão artística, que é autônoma, independente de seu autor. A operação que sustenta Acácio, o filme, é sintetizada numa ação de Acácio, a personagem: resgatar objetos artísticos do passado para, no presente, repintá-los com uma camada de novidade.
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