Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2009.
Os limites do olhar
É bastante claro como os filmes mais interessantes exibidos na 12a Mostra de Tiradentes polarizam, mesmo quando inconscientemente, dois caminhos bastante definidos para o cinema. De um lado, temos filmes realizados com extrema consciência de sua linguagem, mas que tentam minimizá-la, esperando que, com isso, revelem um mundo transparente e dotado de luz própria (caso de A Casa de Sandro, As Iracemas e Acácio); de outro, filmes movidos pelo desejo de significar, de pensar o cinema não como registro, mas como construção de discursos, usando suas ferramentas para construir um sentido que lhes é exterior (caso mais exemplar de A Fuga da Mulher-Gorila).
É a essa segunda corrente que Vida, de Paula Gaitán, parece mais se aproximar, pois ele é um filme sobre a mediação do olhar. Logo entre os primeiros planos, a câmera é colocada frontalmente a uma janela aberta. Diante dela, uma cortina de tecido fino, colorido e esvoaçante, balança ao vento. Sem a mediação desse tecido, o mundo lá fora aparece completamente estourado, indefinido, mergulhado em um branco violento que aniquila a distinção de tudo que esteja fora de seu recorte. Mas o vento se amansa, e a cortina passa em frente à janela. Nesses breves instantes, vemos, através da cortina, uma outra janela. Como um filtro, o tecido, colorido e adornado, translucida algo que o simples enquadramento não nos permite ver.
A pureza do olhar não é construtiva, pois o olhar indistinto não revela, no cinema, aquilo que o realizador enxerga tão claramente diante de si. O cinema tem seus limites técnicos, e é preciso levá-los em consideração no trato com o aparato, para que os limites deixem de ser limitações e se tornem ferramentas. Não basta usar uma janela para enquadrar outra janela, pois usar o cinema para filmar o próprio cinema é, ao fim e ao cabo, uma redundância. É preciso colorir e adornar esse mundo para que, através desse filtro diferenciador, o cinema revele algo. Não basta, portanto, olhar para Maria Gladys. Para compreendermos a Maria Gladys que Paula Gaitán deseja nos mostrar, é preciso colocar algo entre a personagem e a câmera.
Esse procedimento é central em Vida, pois Paula Gaitán não quer apenas que conheçamos Gladys, mas sim que participemos desse encontro de olhares. Esse encontro, porém, precisa que os dois olhares se ativem: Gladys constrói o filme, ao mesmo tempo em que é construída por ele. Em um primeiro momento, a atriz aparece para a câmera de forma bastante protocolar; à medida que o relacionamento entre corpo e câmera avança, as camadas começam a se sobrepor, e os julgamentos mútuos interpelam a imagem. Gladys fala com a câmera por meio de um espelho; aparece refletida em superfícies que deformam sua imagem; é coberta pelo tecido que, naquele primeiro plano descrito, interferia no olhar. Ela declama textos para a câmera, em re-takes sucessivos que – ao contrário do esvaziamento expresso no mesmo recurso em Santiago, de João Moreira Salles – tornam mais complexa a fala, mostrando a quantidade de caminhos que a atriz percebe em cada sílaba, em cada fonema.
Vida é um filme sobre a deformação, pois tudo é matéria bruta a ser moldada. Exatamente por isso, Paula Gaitán precisa evidenciar, visualmente, as camadas dessa construção – nem que seja devolvendo, às ferramentas de construção, seus sentidos literais. Daí a expressividade estonteante do uso daquele mesmo tecido para fazer transições “em cortina” entre dois planos – recurso cinematográfico antiqüíssimo que, restituído de seu sentido inicial, volta a atenção do espectador para a palpabilidade de sua natureza. Torna diegético o não-diegético.
Vida é, sim, o registro da relação de sedução e afastamento entre câmera e personagem, mas a relação é plena, pois o mostrar não é apenas revelar, mas também se deixar ser vista, e se deixar contaminar pelo olhar do outro. No plano mais deslumbrante do filme, vemos Maria Gladys dançando com a filha, em um cabaré. A câmera, distante em um primeiro momento, aos poucos ganha ritmo, entrando no ritmo da dança e se aproximando das personagens. Até que Maria Gladys caminha até à sacada; seguimos a atriz que, ao sair pela porta, some em um véu de superexposição. De repente, ela ressurge do branco transformada, caminhando em direção à câmera com um olhar confrontador, fazendo com que ela retorne o caminho percorrido até aquele momento.
Não se arranca intimidade à força; se estabelecemos uma relação com Maria Gladys, é por ela desejar, também, que isso aconteça. Para olharmos para ela, é vital que ela queira se mostrar. Não vemos uma pessoa como ela é, pois ela tem, também, controle sobre a maneira como ela quer se mostrar – e isso, aliás, é o que realmente interessa. Isso fica claro quando, cantando “Emoções”, de Roberto Carlos, Maria Gladys muda a letra para “se chorei, ou se sofri”. Chorar não é sofrer, e desvios sutis e essenciais como esse fazem de Vida não um retrato, mas um mosaico rico e cheio de vida dessas pequenas deformações; desses monumentais gestos artísticos. Ao fim, voltamos à janela ensolarada, onde a cortina segue balançando ao vento. Com uma correção de diafragma, a câmera sub-expõe o ambiente onde ela está para, com isso, poder enxergar a janela que se perdia na claridade. Após aquele embate incessante de olhares, conseguimos, enfim, enxergar parte do mundo de Maria Gladys. Pela exacerbação de seu próprio filtro, Paula Gaitán nos conduz, enfim, a olharmos para o mundo pelos olhos de Maria Gladys.
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