Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2009.
Em busca de luzes
Buscar indícios das questões que alimentam uma curadoria no comportamento das personagens dos filmes programados – em especial numa sessão de abertura – gera, na relação crítica, o sério risco de queimar a largada, perdendo a corrida antes de ela sequer começar. No caso da 12a Mostra de Tiradentes, porém, ignorar as relações à medida que elas se apresentam seria decisão ainda mais problemática: do slogan da Mostra (cinema contemporâneo em todos os sentidos) aos discursos na cerimônia de abertura, é notável a preocupação em não só estabelecer um raciocínio que costure as escolhas, mas também a vontade de colocar espectadores, realizadores e crítica em um excepcional (no sentido de exceção, precisamente) estado de atenção. Atenção não só aos critérios que instauram essa coerência interna à mostra, mas principalmente a um jogo de revelações que se reconhece como intermitente, momentos de brilho percebidos por um olhar já um tanto acostumado à escuridão que por vezes encobre a produção realizada no Brasil.
Nesse sentido, é bastante revelador que a crise se imponha, em Se Nada Mais Der Certo, na escuridão: devido ao atraso no pagamento das contas de eletricidade, a luz é cortada na casa de Leo (Cauã Reymond). Mergulhada no breu, Angelina (Luíza Mariani) tem a banal, mas decisiva iniciativa de acender uma vela. Recortada no escuro, ela caminha para o fundo do quadro, como se o simples ato de acender a vela a conferisse luz própria. É esse movimento, igualmente sutil e revelador, que conecta todas as personagens nesse novo filme de José Eduardo Belmonte:a luta diária de não se deixar afogar na ausência de brilho de suas vidas cotidianas. Um pouco mais adiante, Leo e Angelina conversam sobre os entraves da vida. Enquadrados de perfil, com um par de cacos de velas em primeiro plano, quando a conversa se abranda um corte mostra o mesmo espaço frontalmente, e as velas se multiplicam, trazidas do extracampo pela decupagem. Luz é calor. Temos, aí, duas boas palavras para nos aproximarmos de Se Nada Mais Der Certo.
É natural, portanto, que o filme nos lembre, constantemente, duas obras-primas daquele que é, talvez, o maior artista da luz entre os realizadores contemporâneos: Adeus ao Sul (1996) e Millennium Mambo (2001), filmes de Hou Hsiao-hsien que também enxergam a luz como principal ferramenta de expressão e compreensão do universo jovem contemporâneo. Mas se, em Millennium Mambo, a luz negra dos clubes noturnos e o âmbar suave do apartamento de Vicky (Shu Qi) só ressaltam a distância fria que se coloca entre as personagens, o filme de Belmonte vai em direção rigorosamente oposta, abolindo, quase absolutamente, planos em que um ser aparece sozinho no quadro. Essa afirmação pelo convívio faz lembrar de outros dois filmes vindos daquele mesmo canto do mundo, na mesma época: Amores Expressos (1994) e, sobretudo, Anjos Caídos (1995), de Wong Kar-wai – essa sim a influência de maior vulto em Se Nada Mais Der Certo.
O parentesco está tanto nos desenhos de câmera e decupagem quanto em caminhos adotados na filmagem (algo facilmente perceptível nas falas dos atores, no debate realizado na mostra), ou mesmo pela desenvoltura notável com o texto impresso em tela. Mas, principalmente, pela percepção da vida como trânsito ininterrumpto pela escuridão, onde as poças de satisfação e prazer são tão fugazes quanto intensas: o lume de um cigarro acesso, a taquicardia estroboscópica das pistas de dança, as ondas de afeto propagadas por uma tela de televisão, a superexposição condensada em um saquinho de cocaína. A luz não é sinônimo de iluminação, ao menos não epifânica; é, sobretudo, um momento de brilho, de prazer, de satisfação. As velas queimam até a última gota de cera, e é preciso se aquecer de outra maneira.
Existe, porém, um caráter extraordinário nesses momentos, pois a luz é principalmente aquela que confunde o foco, que explode a claridade do lado de fora (o mundo, o exterior), e joga às sombras uma relação entre mãe e filho. A luz que reflete em aço no revólver à cintura. Belmonte restaura força a um conceito físico já extremamente desgastado, pois é a luz que forma e deforma a visão: estão lá, também, as bolhas coloridas que se tornam os postes da cidade, deformados pela gota de água que repousa no vidro do carro, explodindo o concreto em possibilidades de abstração. Não à toa, Se Nada Mais Der Certo é melhor quanto mais ambíguo, assimilando à imagem a androginia de Marcin (Carolina Abras) e Sibele (Milhen Cortaz) – anjos de neon que parecem sempre preferir o “estar” ao “ser”. Por isso mesmo, o rigor, sempre isoladamente impressionante na mise-en-scène de Belmonte, perde força quando se obriga a fazer o tempo andar (as sequências dos assaltos; a literalidade excessiva de alguns diálogos), como que tentando assegurar, junto ao espectador, uma relação que nunca esteve ameaçada. Isso por Belmonte ser mais um criador de planos-sínteses do que um narrador tradicional, alcançando maior força na relação ideogramática do acúmulo de informações (sonoras, visuais, espaciais, temporais) do que na concatenação de planos de uma montagem mais tradicional.
Esse desejo de síntese, de criar unidades que acabam dentro de seu próprio movimento, faz lembrar tanto do cinema de Eisenstein e, principalmente, Dziga Vertov, quanto de Bang Bang (1971), de Andrea Tonacci – filmes que implodem a relação mais estrita com a linearidade para, norteados pela lógica interna de uma montagem de sensações, geram uma idéia de estado de espírito. Nesse sentido, há dois planos excepcionais em Se Nada Mais Der Certo: a correção de diafragma no momento em que Wilson (João Miguel) engatilha sua arma, colocando em perspectiva um horizonte até então superexposto; e o plongée de Angelina em um viaduto, contemplando o desconhecido (a morte? o medo? o futuro?) que se esconde, na pista de baixo, nas áreas subexpostas da pelicula. São, ambos, casos em que Belmonte resolve, dentro do plano, sentimentos que a montagem enfraqueceria em excesso de claridade.
A montagem é, no filme, a expressão última das personagens. Mais do que o interesse em um discurso, em um arco dramático, o cinema de Belmonte se concentra na intensidade da experiência de suas personagens. Por isso um dos recursos mais fortes do filme é o fast forward que, em vez de tentar simular uma viagem de drogas, parece registrar a tentativa da câmera de alcançar o ritmo das personagens que ela filma. O final não poderia ser mais eloquente: Marcin presa entre o mar, à sua frente, e o mundo às costas, que, ao mesmo tempo, aprisiona e liberta Antoine Doinel em Os Incompreendidos (1959), de François Truffaut. Mas ali, naquele filete de terra, ela encontra alguém para abraçar. A jornada é acidentada, mas para cada hora de trevas há um segundo de luz. Luz frágil, rara e quebradiça, mas de uma intensidade revigorante. O que, em ritmo de mostra, parece uma boa maneira de descrever a relação diária possível do crítico com o cinema de cada dia.