Publicado originalmente na Cinética em Dezembro de 2008.
Noites estrangeiras
“Sempre que há intrusão, há desordem, há tumulto e há ameaça. Um intruso é sempre ameaçador. A própria palavra ‘intruso’ reflete uma forma de ameaça”.
Jean-Luc Nancy em Vers Nancy (2002), filme de Claire Denis
Nosferatu, filme realizado por Friedrich Wilhelm Murnau em 1921, nasce da possibilidade de uma chegada. Knock (Alexander Granach) convoca Hutter (Gustav von Wangenheim) para ir ao castelo do Conde Orlok (Max Schreck) de forma a viabilizar o desejo do Conde de comprar uma casa em Bremen – cidade onde eles moram. Na viagem de ida, o rapaz passa uma noite em uma estalagem, onde, antes de dormir, lê um livro sobre vampirismo. O desenrolar da trama é, hoje, esperado e familiar: Orlok se revela um vampiro, que só será destruído com o sacrifício sexual de Ellen (Greta Schroeder), esposa de Hutter. Nessa rápida sinopse, dois dados são indicadores essenciais para a compreensão do universo de Murnau. O primeiro, é que o espaço concreto funciona, sempre, como possibilidade de projeção do imaginário do indivíduo. Se olhos hoje habituados ao cinema fantástico apreendem facilmente o universo diegético como um mundo em que os limites do natural são facilmente transpostos (o sobrenatural, ora pois), nesse momento ele ainda define as fronteiras da natureza concreta do mundo.
Assim como O Gabinete do Doutor Caligari (1920), de Robert Wiene (ou, mantendo ponte com dias menos distantes dos nossos, O Bebê de Rosemary, de Roman Polanski), Nosferatu é cuidadosamente talhado como sonho, como projeção. A partir da noite na estalagem – momento em que o registro do filme cruza a fronteira para um outro universo – estamos vendo e vivendo uma sonâmbula aventura. Esse pequeno desvio de olhar é importante, pois nos leva à segunda, e mais presente questão temática na filmografia de F.W. Murnau: o desconhecimento do outro. A projeção da imagem lida à cabeceira da cama (o vampiro) sobre o rosto do estrangeiro vem, na verdade, apontar uma inquietação que é encontrada em diversos momentos da carreira de Murnau. Apesar de suas realizações serem, por vezes, estilisticamente tão destacadas, em parte acabam conectadas por esse interesse anterior pelo choque entre mundos distintos, entre confortos distantes ameaçados pela existência do outro.
“Não necessariamente a presença do outro, mas a percepção de sua existência”. (Nancy)
Nosferatu seria, portanto, a imagem desse medo, dessa insegurança diante da chegada de um estranho – sujeito com hábitos outros cuja presença modificará, necessariamente, um espaço já ordenado. Não à toa, esse espaço cênico é construído de maneira fluida, para que possa abrigar diversos níveis de “naturalidade” em um mesmo ambiente: na primeira tentativa de ataque do vampiro, um plano em que Ellen grita pelo marido ameaçado é confrontado a um contraplano, onde Nosferatu se surpreende com algo que vem da mesma direção do grito.
Com um corte, duas imagens separadas espacialmente por quilômetros de distância ganham, ali, um mesmo espaço. Muito apropriadamente, essa cena se dá, também, durante o sono de Ellen. Esse salto é extraordinário, pois faz de Nosferatu mais do que o olhar de uma personagem, delimitando um espaço onírico autônomo onde feixes imaginários de origens diversas convivem em relação, e os elementos cênicos são tratados com essa ilimitada mobilidade do sonho (fazendo lembrar o trabalho espacial de Alain Resnais, ou de David Lynch). Nesse sentido, a construção visual de Nosferatu (e não Orlok), a personagem, é muito clara: mais do que uma pessoa, ele é uma sombra, uma projeção de luz recortada. Uma imagem, apenas, mas que é capaz de atravessar portas e paredes, invadindo lares onde sua presença é temida.
“Eu percebi que a palavra ‘intrusão’ é freqüentemente usada por psicanalistas em relação a fenômenos que brotam na consciência, na mente de alguém, de uma maneira violenta, ameaçadora e até alucinatória”. (Nancy)
Conforme Murnau sai do mundo das projeções de Nosferatu, e se dedica a fantasmas mais concretos, é notável a sua preocupação em blindar seus questionamentos de interpretações equívocas, afastando as leituras rasas de que seu “intruso” avivaria ranço de xenofobia. Aos poucos, a intrusão deixa de ser uma construção em sombras, e se torna um abismal jogo de máscaras. Em Tartufo (1925), o intruso reaparece por uma dupla via: a criada (Rosa Valetti) que tenta afastar o patrão (Hermann Picha) de seu neto (André Mattoni), para poder envenená-lo e ficar com sua herança; e o Tartufo (Emil Jannings), personagem do filme dentro do filme, que parasita a ingenuidade de um nobre (Werner Krauss), afastando-o de sua esposa (Lil Dagover) para poder, também, roubar seus bens. Tido freqüentemente como um filme atípico dentro da carreira de Murnau (trata-se de uma adaptação de uma comédia de Molière), Tartufo progressivamente se mostra tão consoante às preocupações do realizador quanto seus filmes mais claramente alinhados. Mais do que isso, ele apresenta uma nova questão: o intruso pode ser quem nos está mais próximo.
Em um primeiro momento, somos instalados na rotina da casa onde moram o velho conselheiro e sua criada. Quando seu neto nos é apresentado, o recebemos com olhos poluídos pela lógica que acompanhávamos até aquele momento: é ele o intruso daquele lar. A criação e desconstrução de arquétipos são uma constante na obra de Murnau – sendo cabal, como veremos, em Aurora (1927) e, sobretudo, City Girl (1930) – e já aparecem, em Tartufo, como parte de um jogo que tem como fim o espectador. Pois, com uma simples quebra de eixo, Murnau dá início ao jogo de máscaras que se espalhará pelo resto do filme: saímos de um plano em que o neto olha da esquerda para a direita, para um contraplano onde a criada olha no sentido contrário, para, em seguida, o neto voltar à tela projetado sobre a criada, espelhando sua primeira posição no quadro. O neto deixa de ser neto, e seu rosto se torna uma máscara, um arquétipo, um valor; uma carapuça de intrusão que, com essa quebra de eixo, sai de sua cabeça para a da criada. A preocupação com o rosto determina a construção do filme, seja pela narrativa – são personagens que querem desmascarar outros personagens – ou pelo tratamento visual desses mascarados, já que tanto a criada quanto Tartufo trabalham com expressões mais amplificadas, com rostos elásticos que se adaptam aos interesses de cada ocasião.
Curiosamente, é o cinema – esse grande baile de máscaras – a ferramenta que será usada pelo neto para revelar o que se esconde abaixo da superfície, projetando, sobre o conselheiro e sua criada, a relação entre o nobre e Tartufo. A projeção serve, também, como mascaramento, mas nesse caso a operação é reveladora, pois escancara significados projetados sobre o mundo. Cinema que mascara tanto quanto revela, como deixa clara a fala final da personagem de Mattoni – perguntando se o espectador também não estaria, mesmo que inconscientemente, sustentando seus próprios parasitas – que, ao mesmo tempo, abre a possibilidade de que ele pudesse ser, também, um mascarado. Mais do que condenar as máscaras, em si, ou acreditar que o cinema revela os rostos que elas escondem, Murnau parece interessado nessa troca incessante de papéis, nesse rosto que encontra sempre corpos diferentes, nessa manobra de sombras e revelação cujo movimento essencial sempre esteve no centro de sua obra.
“Sempre há uma outra voz falando pela nossa voz quando realmente dizemos alguma coisa”. (Nancy)
É com Aurora e City Girl, porém, que Murnau tornará todo o raciocínio acerca da intrusão ainda mais complexo. Filmados em Hollywood – fábrica de aparências – os dois filmes podem, hoje, ser vistos como um díptico, um par harmônico que apresenta dois lados de uma mesma questão. Aurora (foto ao lado) leva as máscaras novamente aos rostos: um casal que vive no campo tem sua tranqüilidade matrimonial atormentada por uma sirigaita da cidade. Ela – morena, com traços fortes de vaidade – tenta convencer o rapaz a assassinar sua esposa – loira, com rosto de boneca inacabada – e fugir com ela para a cidade. A idéia de trabalhar com arquétipos fica ainda mais clara pelos nomes creditados às personagens: The Man (George O’Brien), The Wife (Janet Gaynor) e The Woman From the City (Margaret Livingstone).
Em um primeiro momento, acreditamos que Aurora seria um filme sobre o paraíso maculado pela chegada dos turistas à pequena vila de veraneio. Qualquer possibilidade de uma crítica esquemática e anunciada ao mundo urbano cai, por completo, na segunda metade do filme: uma vez não consumado o assassinato, homem e esposa pegam um bonde para a cidade. Ao contrário do que poderíamos esperar, esse espaço não é retratado como antro de corrupção, mas sim como terra de luzes pulsantes, jorrando vivacidade em desordenado e maravilhoso movimento. Mais do que estabelecer uma oposição entre os dois espaços, Murnau os desenha como trajetória: as personagens precisam sair do campo e passar pela cidade (daí os nomes arquetípicos) para redescobrir o amor que as une. É preciso, portanto, delimitar as personagens por suas diferenças espaciais e culturais, para, assim, descortinar as projeções que as deformam. É preciso, acima de tudo, compreender o intruso como um intruso.
“Eu não consigo diferenciar integração de assimilação, mas eu sei que toda essa idéia de aceitar diferenças visa, de fato, apagá-las; torná-las imperceptíveis”. (Nancy)
Em diálogo com Aurora, City Girl vem tornar as idéias de Murnau tão mais complexas quanto cristalinas: dessa vez, acompanhamos Lem Tustine (Charles Farrel, em um dos trabalhos de ator mais impressionantes do cinema silencioso) ir do campo para a cidade, onde tentará vender a colheita de sua família. Lá ele conhecerá Kate (Mary Duncan), garçonete de um bar que, muito rapidamente, demonstra um certo afeto pelo jovem fazendeiro. Murnau sabe bem as marcas do estereótipo que construíra em Aurora, e reforça as expectativas do espectador na caracterização de Kate: um rosto angelical, e cachos de cabelo que cravam-lhe a trinca numérica maldita na testa. Mais eloqüente, impossível.
Enquanto procuramos as garras que se escondem sob o esmalte, recebemos uma entrega completa e apaixonada de Kate a seu novo amor, em um casamento que marca o fim da vida na cidade, e a migração para o campo. Ao contrário dos ambientes idealizados de Aurora, a fazenda da família Tustine se revelará uma autarquia patriarcal reticente com a jovem imigrante, disposta a expulsá-la, se não fisicamente, como voz ativa no seio familiar. Saem as luzes do parque de diversões e o chalé à beira do lago de Aurora, entram a cidade como local de trabalho e os trigais crus e alegóricos da fazenda de City Girl. A idéia de paraíso perdido, tão erroneamente associada a Aurora, se esvai por completo, pois o campo é, também, espaço moldado por tensões políticas fortíssimas.
Não à toa, a parceria com Robert Flaherty em Tabu (1931) já nasce condenada: enquanto Flaherty tem um projeto em que a organização social selvagem é harmônica e idealizada, Murnau o compreende como construção política. Tabu, seu último filme, mostra um mundo onde a dificuldade da relação com o estrangeiro não é meramente exploratória (como em um Louisiana Story, por exemplo), mas sim cultural. Isso fica igualmente claro tanto em seqüências mais eloqüentes (como a integração de Reri à ilha vizinha) quanto em pequenos cuidados de construção, seja ela visual (a tradução dos intertítulos) ou narrativa (a relação do jovem casal com o dinheiro e o trabalho, por exemplo).
“Nós concordamos que é necessário receber bem os estrangeiros. É isso que nós queremos, mas a maneira em que nós impomos, normatizamos, padronizamos essa recepção – a recepção das diferenças e o respeito aos outros – indica que nós acabamos ignorando seu caráter estrangeiro”. (Nancy)
Mas Murnau fazia, sobretudo, filmes de amor. O interesse constante entre as fronteiras pontiagudas que separam as pessoas parece, ao fim, um esforço de compreensão dessa força extraordinária que as mantém juntas, celebrando essa entrega que percebe a diferença, mas deseja se tornar um pouco do outro também.
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