Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2008.
Reescrevendo o mesmo passado
Sempre que um artista concebe um projeto a partir da vida ou do trabalho de outro artista, surge um inevitável dilema: até que ponto a obra resultante precisa dialogar com o espírito que a inspirara? Embora a questão seja instigante, os filmes não dão respostas absolutas: para cada Não Estou Lá (filme-pulsão de Todd Haynes inspirado nas muitas vidas de Bob Dylan) há uma penca de Johnny & June (a problemática cinebiografia de Johnny Cash realizada por James Mangold). Há também filmes brilhantemente distantes (para ficarmos em um exemplo dentro do próprio Festival, temos Inútil, de Jia Zhang-ke) e mimeses de estilo um tanto constrangedoras (lembremos dos planos à Limite de Onde A Terra Acaba, de Sérgio Machado, por exemplo).
No caso de Joe Strummer: O Futuro Está Para Ser Escrito, há uma notável intenção de carregar a imagem com as cargas pulsantes do personagem que dá título ao filme – Joe Strummer, falecido músico mais conhecido por ter liderado a banda punk inglesa The Clash. O problema maior é que esse desejo se manifesta apenas na superfície, e não na realização e organização do material filmado. Em cada montagem de atrações com cânones da rebeldia (de If… – clássico do free cinema inglês dirigido por Lindsay Anderson – à adaptação animada de Joy Batchelor e Jon Halas para a Revolução dos Bichos¸ de George Orwell), há sempre uma previsibilidade organizadora do material, estabelecendo relações desgastadas, gerando o incômodo semelhante ao de se ver um adulto vestindo roupas de garoto. A partir do momento que Julien Temple tenta aproximar seu ritmo às canções do líder do Clash, reina a impressão de que Joe Strummer é um trabalho de gabinete; um discurso conservador que se esconde sob uma fina pele de aparente rebeldia. Um agente disfarçado.
Se essa imagem wanna-be gera um desconfortável embaraço, resta, portanto, ater-se ao discurso. E é exatamente aí que o filme de Julien Temple passa de uma homenagem, a uma acidental afronta ao líder do Clash. Pois embora o filme traga um depoimento de Strummer dizendo que sua ruína artística começara quando sua banda deixara de ser parte de algo maior (a cena punk inglesa, a bem dizer), e se tornara produto de idolatria desgarrada em um universo do qual eles não faziam parte, Julien Temple repete esse movimento histórico isolando Strummer de seus pares. Há, ao longo de todo o filme, a intenção de celebrar seu passado gênio individual, seja nos depoimentos de seus ex-companheiros de banda, nas falas de fãs ilustres (Bono, Red Hot Chili Peppers, Johnny Depp, John Cusack) ou na constrangedora rodinha de violão à beira da fogueira, onde amigos e ex-parceiros musicais tocam canções famosas do Clash (mesmo que não sejam de autoria de Strummer – como é o caso de “I Fought The Law”, cover de Sonny Curtis & The Crickets) em festivo funeral. Não ouvimos sequer uma canção inteira, pois há, no filme de Temple, não o fascínio pelo magnetismo de um artista, mas sim o desejo discursivo de construir um intransponível abismo: o ídolo e seus seguidores.
Exatamente por isso, a única parte do filme que ganha algum interesse é a que se concentra na vida de Joe Strummer pós-Clash. Talvez porque, seja em seus trabalhos solo ou nos últimos discos com os Mescaleros, a trajetória de Strummer tomou rumos de tão pouca visibilidade, que o filme tenha dificuldade de celebrá-la como estado de exceção. Ao passar por um momento de tranqüilo sumiço das páginas dos jornais, o filme de Temple precisa se concentrar no “pouco” que restou: as canções, as pulsões realizadoras de Strummer ao lado de novos e velhos parceiros, a interação com uma geração que mal sabia de seu passado. Nesse momento, o filme ganha um derradeiro sopro de força, que se esvai com a precoce morte do músico. Pouco demais, tarde demais.