Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2008.
A culpa do olhar
Quatro Noites com Anna, o amplificado retorno de Jerzy Skolimowski após 15 anos longe da direção, é uma reconstituição: os sons em off indicam, logo no começo, que a narrativa parte de um interrogatório policial. A grande questão complicadora – para o interrogatório e para o filme – é que Leon (Artur Steranko) é regido por uma lógica absolutamente particular, onde imaginação e concretude se misturam. Não bastassem, portanto, as lacunas que esburacam toda rememoração, aqui estamos, ainda, diante de um sujeito de olhos turvos que problematiza constantemente sua própria visão. De certa forma, é esse o maior desafio (e a maior conquista) de Skolimowski em seu filme: respeitar a natureza fragmentária do ponto de vista de seu protagonista, sem, com isso, alienar o espectador naquela delicada relação.
Estamos, porém, diante de um filme polonês – povo marcado pelo estabelecimento sobre bases fundamentalmente católicas. Embora exista, em Leon, um voyeurismo agudo, ele é sempre tomado pela culpa, por um sentimento edipiano que reflete, em Anna, sua relação com a avó doente que o criara. Ainda mais por sua relação com Anna ter nascido da presença em um fato traumático: o testemunho de um estupro. A obsessão pela mulher é, portanto, fruto dessa natureza ambígua, já que o desejo parece surgir pela presença ocasional em um ato de violência sexual. Essa ambiguidade muda a chave da visão, pois, segundo a lógica do protagonista, ver, talvez, não seja somente testemunhar; ver é, também, provocar, causar. Embora Anna confirme a inocência de Leon, o filme e a personagem são rondados por esse dilema do visível: até que ponto o olhar transforma o que vê?
É bastante esperado, portanto, que Skolimowski povoe seu filme com lanternas, janelas, quadros luminosos, e todo tipo de meia-luz. Mais surpreendente, porém, é que – assim como Na Cidade de Sylvia (2007), de José Luís Guerín; e Sonata de Tóquio (2008), de Kiyoshi Kurosawa – Skolimowski venha acentuar a visão pela amplificação de detalhes sonoros: a colher que raspa as paredes de um pote de melado; o cigarro queimando; o comprimido esmagado em uma colher de metal. É bastante curioso, portanto, que filmes tão preocupados com o olhar amplifiquem a individualidade do sujeito justamente pelo som. Como o olhar é expressão da câmera (do que, como bem notou Felipe Bragança em uma conversa entre filmes, a imagem cabal seria o tripé vazio que protagoniza um dos planos de Aquele Querido Mês de Agosto, 2008 – o grande filme de Miguel Gomes), o tecido sonoro se torna tela da individualidade, da organização e harmonização de um mundo por vezes caótico e barulhento (Na Cidade de Sylvia), por outras, silencioso e soturno (Sonata de Tóquio e Quatro Noites com Anna).
Embora Quatro Noites com Anna não tenha o frescor da novidade dos filmes citados no parágrafo anterior, não é nada difícil se deixar envolver por essa trama de imagens e sons, de claros e escuros, de sugestões e revelações, tão habilmente tecida por Jerzy Skolimowski. O trabalho de uma personagem de exceção ganha, aqui, uma dignidade bastante rara, que consegue algo nada fácil: fazer o espectador colaborar de sua curiosidade e paixão sem, com isso, tomar para si, também, a culpa de seu olhar.