Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2008.
A imagem roubada
Em A Moeda do Absoluto (1998) – uma de suas História(s) do Cinema – Jean-Luc Godard pensa como os cinemas europeus reagiram à segunda guerra mundial. Embora só os italianos tenham tido algum tipo de resposta mais concreta – e é justamente sobre o neo-realismo que Godard tratará nesse episódio – seu comentário sobre o cinema inglês é especialmente mordaz. “O cinema inglês”, diz em voice over, “fez o que fez em toda a história do cinema: nada”. Embora Godard venha relativizar sua ironia declarando amor, no episódio seguinte, ao cinema do britânico Alfred Hitchcock, sua frase volta à cabeça ao longo de toda a projeção de Rock’n’Rolla – filme de Guy Ritchie, exibido no Festival do Rio em uma mostra dedicada ao novo cinema inglês.
Porque, surpreendentemente, Ritchie faz um filme sobre a busca por uma imagem. Narrativamente, ela se traduz em um quadro que passa de mão em mão e é buscado por todos até o final do filme. É notável, porém, a inquietação do realizador inglês pela posição do cinema local diante do mundo, e Rock’n’Rolla se revela, sobretudo, uma busca por essa imagem perdida. Essa busca de identidade se mostra mais curiosa à medida que analisamos a construção interna do filme. Para além do sotaque, Ritchie povoa seu filme de ícones da arte inglesa: como símbolo da grande pintura, um quatro de J.W.M. Turner na parede; como exemplo de boa música, uma canção do Clash. Curiosamente, esses bastiões da grandeza britânica parecem colocados à força dentro de um filme que, esteticamente, não encontra diálogo com seus pares locais.
Guy Ritchie é, obviamente, um grande fã do cinema norte-americano, mas os símbolos nacionais em Rock’n’Rolla vêm tomados pela culpa; enquanto Quentin Tarantino (referência mais óbvia para a superfície de seu cinema) dialoga abertamente com os cinemas estrangeiros que povoam suas próprias imagens, Ritchie controla seu afeto em busca de uma assinatura, domando a presença de suas influências com medo de elas clamarem o filme para si. Ironicamente, é exatamente isso que sua covardia lhe ganha: em vez de um olhar que pensa as imagens que consome, RockNRolla é assombrado por suas próprias influências, tentando – sem sucesso – fugir delas plano a plano, sem a confiança de abandoná-las como terreno de familiar eficiência. O que sobra, portanto, para Guy Ritchie, além do empilhamento descontrolado de cinemas outros?
RockNRolla é, entre os filmes de Ritchie, o que melhor responde a essa pergunta, fazendo com que a questão maior para o espectador seja se dar ou não por satisfeito com essas respostas. Sobre sua decupagem, poucas sequências são tão ilustrativas quanto a que dois personagens se dividem entre quatro conversas telefônicas; os cortes entre uma ligação e outra, ouvindo informações incompletas que o raciocínio (como a obrigatória voice over) parcamente amarra, sintetizam o vai-e-vem da montagem de Ritchie, em um desvio de atenção crônico que nunca pára para ver ou ouvir nenhum dos fragmentos de mundo que cria para si. Sobre a natureza de suas imagens, outra sequência é chave: ao filmar um show da banda The Subways, Ritchie impõe o desejo de simulacro trocando a performance da canção pelo playback da gravação da banda em estúdio. RockNRolla é tomado por esse esvaziamento da imagem, esse simulacro da aparência. É cinema em playback.
A preocupação de Ritchie não é, portanto, com a imagem, mas sim com uma aparência de imagem. Não à toa, o quadro cobiçado por todas as personagens do filme nunca é mostrado; só vemos sua moldura, seu entorno, seu verso. Não há importância em criar ou revelar uma imagem; para Ritchie, ela não passa de um mcguffin. Ao fim da projeção, fica a impressão de que o personagem que mais se assemelha ao diretor é o viciado em drogas que revende todo tipo de coisa para acalmar seu vício. Quando ele oferece uma cópia do quadro a seu dono original, ele imediatamente puxa um maço de notas do bolso e pergunta quanto custa. Embora concretize a venda, o contrabandista fica extremamente frustrado por não usar o discurso que havia preparado sobre o quadro. Sua crença era de que o fator de convencimento determinante não fosse a imagem em si, mas sim sua retórica sobre ela.