Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2008.
Espetáculo do panfleto
CSNY: Déjà Vu é um documentário dirigido pelo músico Neil Young (assinando, aqui, com o pseudônimo Bernard Shakey) sobre a turnê de reunião de sua mais clássica banda: Crosby, Stills, Nash & Young. Se essa micro-sinopse pode sugerir um possível registro assumido em primeira pessoa, a adoção do pseudônimo é mais reveladora: estamos mais próximos, aqui, do desejo por imagens autônomas do telejornalismo, em que as idéias de autoria e manipulação (pura e sempre presente, sem juízo de valor à palavra) são trocadas pelo desejo de parecerem blindadas a qualquer relativização. Logo nos primeiros planos, com os soldados em contraluz, já fica claro que o objetivo de Neil Young com o filme não é exatamente registrar o retorno da banda, mas sim repisar os principais motivos que provocaram a reunião: protestar contra a guerra do Iraque e o governo Bush.
A reunião da banda passa, portanto, de foco do filme a sintoma. As canções apresentadas na íntegra estão ali para (cor)responder ao discurso do filme, com menor interesse na música ou na presença dos músicos do que no impacto junto ao público. É por isso que CSNY: Déjà Vu se torna mais interessante à medida que a turnê entra por território conservador. Se a agenda política dos concertos esbarra sempre no maniqueísmo entre vermelhos e azuis (republicanos e democratas), é o registro do confronto entre as duas metades do país que rende as situações de maior tensão dramática.
Notáveis são, nesse sentido, as cenas do show em Atlanta – estado tradicionalmente conservador que se choca com a canção “Let’s Impeach the President” – e, principalmente, a entrevista com a mãe do soldado morto cujo rosto é lembrado, entre tantos, no telão que faz fundo ao palco do show. A cena é reveladora, pois desmonta a ingenuidade aparente, até então, nos discursos dos entrevistados e do próprio filme. Embora se diga emocionada com a homenagem, a lucidez maior da fala dessa personagem está na consciência de que a imagem de seu filho se tornara, ali, também um ícone de propaganda política. A percepção um tanto banal de que todo ato é político – e, no caso do filme isso se dá em transparente divisão: para um lado, ou para o outro – acaba por expandir a consciência do filme como uma ferramenta panfletária.
É, portanto, mais interessante olhar para as brechas do que para o próprio discurso. Interessam, sobretudo, a organização política dentro da própria turnê (a fala de David Crosby que caracteriza o CSNY como uma “ditadura legal” liderada por Neil Young), a vinculação à aparência do novo jornalismo independente norte-americano (Stephen Colbert e Mike Cerre), e a idéia de que há, em tela, alguém tomado por uma dupla-consciência da presença da câmera (não só como documentarista, mas também como personagem). Se há muito de encenação em todo documentário, CSNY: Déjà Vu leva, indiretamente, essa idéia a um nível curioso, pois se o controle de o diretor cortar as encenações que não lhe interessam (muitas vezes, as que mais interessam ao personagem) é intransferível, essa operação passa a acontecer dentro do próprio plano – editando as palavras que ainda serão ditas.
É surpreendente, porém, que o pronto posicionamento de CSNY: Déjà Vu como um planfeto liberte o espectador e o filme para o que ele tem de mais interessante: se, por um lado, o discurso de Young nunca ultrapassa os limites do esperado, o documentário passa – com o avanço da turnê – a refletir o impacto de uma obra assumidamente política no mundo contemporâneo. O escopo da palavra, porém, é reduzido (ou focado, a critério de quem olha) ao imediatismo das decisões palacianas. Mais do que se interessar pela maneira como a pólis se organiza, Young encerra os olhos sobre a práxis dos governantes: assim como à época do Vietnã, a postura de Neil Young é, sobretudo, uma reação. A política não é pensada como condição diária, mas sim como resposta pontual a questões específicas que afetam, pragmática e especificamente, a vida das pessoas.
Nesse sentido, CSNY: Déjà Vu vive uma gritante ironia: embora registre o impacto político de uma obra de arte, o filme, em si, nunca clama esse impacto para si. Com isso, temos um filme que, ao cumprir uma agenda, se revela fraco e extremamente limitado. Surpreendente é que essas mesmas fraquezas e limitações tragam à experiência de assisti-lo um clandestino interesse.