Publicado originalmente na Cinética em Março de 2008.
Na paleta de sombras que compõe Sweeney Todd (2007), por dois momentos somos levados a universos dominados por um cromatismo gritantemente particular. O mais claro é o do mergulho em wishful thinking da Srta Lovett (Helena Bonham Carter), então apaixonada por Sweeney Todd (Johnny Depp), em que ela que sonha poder trocar os cinzas da sangrenta vingança que os aprisiona na vida real pelo mundo azul e dourado de sua imaginação. Saímos de um piquenique de verdes esmaecidos e caminhamos, com eles, perto do oceano, ao lado do azul que se estende por todo o quadro e, em sua simbologia clássica, possibilita o olhar a se perder em infinito adiante.
Logo na primeira parte do filme, porém, outro choque de cores já havia movimentado a lógica interna de forma menos clara e, por isso mesmo, mais intensa. Ao narrar o que teria acontecido com a mulher de Todd, a Srta. Lovett banha um relato de loucura, abuso e suicídio em desconfortáveis tons de ouro, com um calor e uma afetividade aparentemente impróprios, quebrando o monocromatismo que sustenta a estrutura visual de quase todo o filme. Sweeney Todd se revela mais radical nesse seu trabalho de cores quando, mais tarde, descobrimos que o fim da mulher de Todd fora inventado pela Srta.Lovett. O estranhamento gerado pelo afeto cromático do suposto flashback vem, assim como na seqüência da praia, marcar aquele trecho de narrativa como sonho, como desejo. Em um mundo concreto monocromático onde o único salto de cor esguicha de dentro das personagens com o vermelho do sangue, Tim Burton só enxerga a possibilidade de cores na projeção, no exercício ficcional. Mais do que um mergulho pessimista do olhar no mundo – o que, de certa maneira, o filme não deixa de ser – Sweeney Todd marca a inversão de um trabalho de cores que sempre foi central na obra do diretor.
O primeiro filme a deixar clara a intenção subversiva das cores no universo de Tim Burton foi seu primeiro Batman, de 1989. Em meio à cidade das sombras, o elemento perturbador de uma ética da imoralidade reinante era o Coringa (Jack Nicholson), personagem que perdera a pigmentação da pele ao cair em um tanque de ácido. A cena que melhor sintetiza a capacidade desestabilizadora das cores trazidas pelo personagem é a seqüência no museu Fluggenheim: Coringa e seus capangas interferem nas obras de arte em exposição cobrindo-as com tintas coloridas, perturbando o sistema de cores ordenado das telas (à exceção de Francis Bacon) e ferindo o branco das esculturas com manchas, borrões, banhos de disparidade cromática. A cor deixa de existir de maneira figurativa, dentro dos traços que limitam os objetos, e se torna simplesmente cor – em seu estado mais opaco e agressivo.
A seqüência no museu é sintética, pois boa parte da obra de Tim Burton se equilibrará na tensão entre cores e tons de cinza como representação plástica dos embates narrativos que norteiam seus filmes. A subversão social do Coringa é precisamente incorporada pelas combinações de cores berrantes, disparadas por um homem que entende a manifestação bruta da cor como uma maneira de desestabilizar uma ordem vigente composta não só de cinzas e negros, mas também de cores domadas, confinadas às linhas da pintura figurativa. No momento em que Burton traz a pintura para dentro da cena, as pinceladas de violência em Batman parecem ratificar a limitação física da película cinematográfica em isolar cores, como já identificada por Jacques Aumont em O Olho Interminável:
“O cinema trata a cor como um bloco, toda a imagem é atingida, a um só tempo, por cada camada de cor primária. Assim, ele não pode, ou não facilmente, destacar um pequeno pedaço de cor do conjunto da cena”.
As cores do convívio
A incapacidade do cinema de destacar cores seria desafiada por Burton em seu filme seguinte. Edward Mãos de Tesoura já esboça a possibilidade das cores como representação do sonho e dos desejos mais íntimos de suas personagens (lembremos do jardim da mansão onde Edward vivia), mas o pensa de forma inversa à que nortearia seus trabalhos mais recentes. Mais uma vez, Burton usa a cor como manifestação física de subjetividade. A diferença é que Edward Mãos de Tesoura (1990) parte de um deslumbre inicial em relação às cores do mundo: Edward (Johnny Depp) é um personagem em preto e branco, aprisionado nos tons de cinza da mansão que o isolam do convívio social. Essa impressão do preto e branco sobre as cores acaba se mostrando um sistema extremamente bem-sucedido: ele não só é capaz de destacar as cores recortando-a com um pedaço de ausência (o p/b em Edward), como cria um significado narrativo a partir desse destaque.
O que é mais comovente no filme de 1990, é que Burton olha para esse mundo pelos olhos de Edward: para quem passou a vida inteira trancado dentro de sua própria consciência, a simetria da arquitetura suburbana norte-americana – inflada, aqui, como conto-de-fadas – é, de fato, um deleite para os olhos. Edward Mãos de Tesoura é, de certa maneira, um filme sobre o desencanto com essa organização social; um retorno consciente ao cinza, ao auto-confinamento. As cores como distração. Embora a quebra da simetria plástica trazida por Edward seja inicialmente bem-vinda nos cortes de cabelo e nas esculturas em topiaria, ela passa a ser um problema quando demonstra integridade em sua visão.
Em vez de o preto e branco ser abraçado pelo mundo de cores, ficamos com o antológico plano em que Peg (Dianne Wiest) mistura uma série de cosméticos para colorir artificialmente o rosto de Edward. Nesse sentido, Tim Burton faz, em seu filme de 1990, uma espécie de declaração de princípios artísticos em relação à indústria do cinema – algo que a semelhança física entre a personagem de Depp e o realizador já deixaria bem clara. Afinal, estamos falando de um artista que começou a carreira como desenhista da Disney, realizando filmes marginais dentro da tradição do estúdio (Vincent e Frankenweenie) – não à toa, filmes em preto e branco em um estúdio conhecido pela sofisticação de seu trabalho em cores. A relação complicada com o estúdio ficaria ainda mais clara no retorno ao mundo sem cores que, assim como Edward, Tim Burton faria em Ed Wood (1994) – filme enriquecido pelas camadas de metalinguagem geradas por seu próprio fracasso nas bilheterias.
As cores do isolamento
Se Edward Mãos de Tesoura e A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça (1999), por exemplo, buscavam nos cinzas a representação do fantástico, de Peixe Grande (2003) para A Fantástica Fábrica de Chocolate (2005) entra em movimento a mudança que ficaria consolidada nos planos coloridos de Sweeney Todd. Enquanto aqueles filmes partiam, em sua construção visual, de olhares da sociedade sobre certas figuras (Edward é preto e branco porque, como excluído, é visto como tal), a partir de Peixe Grande é o sujeito quem olha para o mundo.
Peixe Grande, embora desenhado com contrastes mais suaves, é interessante por ser o primeiro filme de Burton a esboçar as cores como próprias ao terreno da ficção. Embora o universo “real” do filme seja também colorido, sua paleta de azuis e pastéis e cuidadosamente controlada para ressaltar a explosão de vermelhos e amarelos do mundo imaginário, da história feita estória, re-colorida pelas tintas da rememoração. Embora ainda exista, no filme, uma separação cromática mais tradicional entre o mundo real e o mundo imaginado, Peixe Grande é o primeiro vislumbre da inversão que se tornará corrente em Burton a partir do filme seguinte.
A Fantástica Fábrica de Chocolate consagra a inversão do olhar que permanece até Sweeney Todd: em mundo onde a realidade empalidece a existência das cores, é na imaginação que elas existem em toda sua potência. O simples giro de chave se mostra uma entrega de peito aberto à dedicação imaginativa/ficcional que marcará o trabalho mais recente do diretor. Desde então, não veremos, em seus filmes, mais uma cidade colorida sequer. O mundo é de uma frieza atroz, e o calor das cores só é permitido no terreno da imaginação.
Essa oposição marcará os dois ambientes básicos de A Fantástica Fábrica de Chocolate – a cidade e a fábrica – assim como separará o mundo dos vivos da terra dos mortos em Noiva Cadáver. Em ambos os filmes, o sonho vem não como possibilidade de fuga, mas sim como terreno para resolução das pendências reais. Se Victor se perde no mundo dos mortos, é somente lá que ele encontra possibilidades de solução dos problemas vivos que o aguardam acima da terra. Da mesma maneira, o mergulho de Charlie (Freddie Highmore) na fábrica de chocolates vem como promessa de afeto e integridade para Willy Wonka (Johnny Depp). Assim como a passagem pelo mundo das cores é necessária para os vivos – em Noiva Cadáver (2005)– é preciso abrir as portas da imaginação para o mundo real entrar – o que acontece no final de A Fantástica Fábrica de Chocolate. Se Charlie é o agente transformador no filme de 2005, é Willy Wonka – o homem de pele levemente azulada – quem estava prestes a afogar em sua própria ficção.
Talvez Sweeney Todd se coloque, nesse sentido, como o mais pessimista dos filmes de Tim Burton. Londres perdera a cor como o mundo perdeu sua capacidade de sonhar. O trabalho de composição cromática, porém, vem nos dizer o contrário: assim como o vermelho gritante esguicha de cada pescoço, o ser humano é todo feito de sonhos. Sonhos que, no esplendor visual das seqüências destacadas no primeiro parágrafo, são capazes, de fato, de colorir o mundo que os cerca.