Publicado originalmente na Cinética em Fevereiro de 2008.
A moral de Tim Burton
Lá pela metade de Sweeney Todd, Tim Burton interrompe o andamento do filme para nos oferecer um sonho: a Sra. Lovett (Helena Bonham Carter – atriz capaz de fazer uma personagem coadjuvante ganhar status de protagonista) racha o mundo de cinzas e vermelhos onde vive com Sweeney Todd (Johnny Depp) confessando seu desejo de uma vida ensolarada e feliz, substituindo os becos de Londres pela areia da praia, o prateado do fog pelo azul e dourado do verão, a obsessão da vingança por uma caminhada pelo píer. No plano final da seqüência, a câmera sai das costas dos personagens para tornar a encará-los de frente. No decorrer do movimento, as nuvens carregadas tomam novamente o lugar do sol, e a praia dourada do sonho da Sra. Lovett retoma o verde pálido da grama onde eles tentavam compartilhar a alegria de um piquenique.
A seqüência – tão intencionalmente destoante do resto do filme – é essencial para a compreensão do todo por responder, muito claramente, ao “o quê” e ao “como” (ou, se preferir, conteúdo e forma) que norteiam Burton neste seu mais novo filme. Respostas que, pensadas mais amplamente, parecem ser as mesmas que servem como fundação estrutural para toda a majestosa obra do diretor.
Sweeney Todd, a personagem, é invariavelmente apontada como um dos primeiros exemplos de serial killers do imaginário ocidental. No musical de Stephen Sondheim e Hugh Wheeler, que inspira o filme de Burton, ele é personagem até mesmo em sua existência diegética: Sweeney Todd é o nome assumido pelo barbeiro Benjamin Barker ao retornar de um exílio forçado na Austrália, onde vivera cumprindo anos de pena afastado da mulher e da filha. Barker é vítima de um falso julgamento por parte do juiz Turpin (Alan Rickman), que usara sua autoridade para tentar facilitar uma aproximação com Lucy (Laura Michelle Kelly), mulher do barbeiro por quem o juiz estaria apaixonado. Após cumprir sua pena, ele retorna a Londres e procura o apartamento onde morava, em cima da loja de tortas da Sra. Lovett. Lá, ela o informa de que Turpin teria estuprado sua mulher, que, movida pela vergonha da desonra, cometera suicídio pouco tempo depois. Todd promete a si mesmo vingar a morte da esposa, e retoma a profissão de barbeiro como o caminho mais curto para poder aproximar sua navalha do pescoço do juiz.
O movimento de câmera do primeiro parágrafo é essencial, pois escancara o interesse que direciona o olhar de Burton em seu Sweeney Todd: a possibilidade de compreender a existência de uma ótica outra para toda estória. Pois se adulto algum se salva nesta fábula (lembremos como o personagem de Depp mata, indiscriminadamente, todo qualquer que venha sentar em sua cadeira de barbeiro), Burton usa os códigos da linguagem cinematográfica (e, se já sabemos o “o quê”, esse seria o “como”) para embaralhar as pré-definições da moral vigente, para com isso defender uma outra moral. Estamos diante de um filme onde um assassino obsessivo não só é protagonista, como também é enquadrado sempre em um levíssimo contra-plongé – construção visual feita de baixo para cima, correntemente usada para “levantar” autoridades, mocinhos e eleitos de toda natureza.
É desse ângulo que vemos Sweeney Todd aniquilar toda sua clientela; que presenciamos o nascimento da idéia da Sra.Lovett de usar a carne dos mortos como recheio de torta (e é bastante expressivo que os corpos sejam mandados ao andar de baixo – com todo o sentido figurado que a mitologia religiosa confere aos porões do mundo – para depois arder nas chamas do forno de tortas); que nos encantamos com a hilária canção sobre quais tipos da sociedade renderiam recheio mais suculento. Esse deslocamento é essencial, pois cumpre o giro que Burton assume como motor de sua obra: a grande maioria das personagens em Sweeney Todd são, sim, capazes de cometer (e cometem) enormes atrocidades; mas todas o fazem em busca do amor. Esse interesse pelo contraplano moral não é, porém, usado como desculpa para uma amoralidade, ou como justificativa da barbárie. De certa forma, Burton parece fazer dos clientes que se esbaldam com as tortas de defuntos uma boa aproximação com o espectador desatento – aquele capaz de beber todos os litros de sangue que o cinema pode oferecer, com o gosto ou o desgosto que o vê como mera gratuidade. A violência, em Sweeney Todd, é questão tanto estética quanto moral – e é assim que ele se porta como o terceiro filme de uma trilogia sobre a moralidade do amor iniciada por seus dois filmes de 2005, A Fantástica Fábrica de Chocolate e A Noiva Cadáver.
A primeira evidência do novo olhar proposto por esse conjunto de filmes está no título original de sua Fábrica de Chocolate: enquanto no filme de Mel Stuart ela pertence a Willy Wonka, no de Tim Burton ela é dada a Charlie. Essa pequena diferença vem se confirmar como giro de meio-círculo na posição política evidente ao quase final do filme, em que Charlie dispensa sua nova herança quando lhe é exigida a separação de sua família. Se no filme de Stuart as crianças são postas à prova em um exercício de darwinismo corporativo, no de Burton é o empresário quem precisa aprender a resgatar seu afeto. Não existe uma negação da ambição pelo sucesso, mas sim a afirmação de que esse sucesso às vezes cobra preços que ninguém deveria estar disposto a pagar. Já em A Noiva Cadáver, essa dualidade do amor vem dividida entre o casamento apaixonado que Victor e Victoria planejam, e a conveniência social e econômica almejada por seus pais com a união. A temporada no vibrante mundo dos mortos parte da condenação de seu futuro, mas restabelece a fé no amor da noiva cadáver (que usara Victor como mera substituição para um velho coração partido), e corrige a vontade dos pais de Victoria de empurrá-la para um conveniente casamento com Lord Barkis – não à toa, o mesmo homem que matara Emily de desgosto ao abandoná-la ao altar.
O amor, portanto, é palavra que vem sendo usada como desculpa para toda sorte de violência. Sweeney Todd torna essa depuração da palavra ainda mais complexa (e, por isso mesmo, mais efetiva) ao trazer seu algoz para o papel principal. Todd mata por amor, assim como o juiz Turpin condenara o futuro de um inocente por amor, e a Sra. Lovett (e seu nome não poderia ser mais expressivo) mente para ter do seu lado o homem que ama. Existe uma praia ensolarada atrás de todo ato de violência em Sweeney Todd, mas isso não impede que o sangue esguiche para todo lado, em manifestação de toda a vida que aquele suposto ato de amor vem tirar.
Até que Todd corta o pescoço da pedinte que, oracularmente, circulava em boa parte da narrativa. Mas dessa vez, o sangue não esguicha; ele simplesmente escorre, tomando a metade de baixo da garganta em um monocromático vermelho. Mais uma vez, Burton usa de um simples recurso do cinema (como o movimento da seqüência de sonho e o contra-plongé que determina seu ponto-de-vista) para nos dizer que estamos diante de uma situação diferente. Descobrimos que Todd havia acabado de assassinar sua mulher (“Eu conheço você”, diz ela, pouco antes de ser morta), que a Sra. Lovett havia matado em ficção, inventando a história do suicídio que manteria Todd – seu amado – ao seu lado.
E se nenhum adulto se salva em Sweeney Todd é porque, como em A Fantástica Fábrica de Chocolate e A Noiva Cadáver, Tim Burton parece só reconhecer afeto construtivo nos jovens, naqueles que ainda olham para a vida com o entusiasmo dos primeiros anos (sentimento que marca o mesmo andamento da preferência de Burton por um universo estético de imaginário quase infantil, e o gosto narrativo pelos contos-de-fadas). A transformação do garoto Toby (Ed Sanders) em último algoz deixa claro, porém, que a deturpação do amor também é capaz de secar os olhos até mesmo dos mais puros. Mas existe um amor digno de salvação neste filme, e é aquele que move o jovem Anthony Hope (Jamie Campbell Bower, em outro personagem de nome sugestivo) na libertação de Johanna (Jayne Wisener) – filha do barbeiro que vivia sob os poderes do juiz, e era a nova vítima em sua tentativa de criar a mulher ideal. O amor tão forte que faz Anthony desafiar o medo e a autoridade pela sua concretização. Personagens que não se destacam por serem heróis irretocáveis, mas sim por olharem pra frente, como se o dia seguinte servisse sempre como possibilidade de corrigir o rumo dos desastres. Personagens que não deixam que as aparências do mundo comprometam os sentimentos que os move, e que o filme, ao fim, abraçará como seus únicos sobreviventes.
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