Publicado originalmente na Cinética em Fevereiro de 2008.
As luzes da memória
É mesmo uma grande ironia a revelação final de Desejo e Reparação vir com o dissabor do anticlímax: a superexposição do filme como uma rememoração ficcional de sua personagem/autora só faz iluminar demais algo que, até aquele momento, Joe Wright já vinha nos indicando pelas frestas da estória. É nos minutos finais que Wright se deixa levar por um ceticismo (ou seria um excesso de concessão?) em relação ao poder da linguagem cinematográfica que não parece, de fato, vir do mesmo artista que, pelos 120 minutos anteriores, tão habilmente a explorara. O problema não é a revelação em si, mas sim a gratuidade de sua literalidade diante de um ponto de vista já muito bem exposto pelo filme em seu desenrolar.
Pois, desde seu primeiro plano, Desejo e Reparação deixa bastante claro de quem são os olhos que ele seguirá: uma menina sentada à máquina de escrever, concluindo sua primeira peça. Após o “the end”, ela corre pelos corredores e cômodos vazios de uma enorme mansão para dividir sua primeira conquista autoral com a família. O som dos dedos à máquina de escrever servirá como elemento percussivo para a trilha-sonora, e marcará a passagem dos anos com as legendas informativas. A máquina onde se escrevem palavras que tentam dar conta do tempo. Estamos diante, portanto, de um tempo que passou, e que é recontado por uma menina apaixonada pela ficção. Mais interessante, porém, é a maneira como Joe Wright usa a construção formal do romance de Ian McEwan para definir a estrutura de seu filme: embora Desejo e Reparação traga uma trajetória linear, a errância (com duplo sentido) da narrativa é determinada pela reconstrução da memória. Em vez de se interessar pela estória em si (ou somente por ela), Wright parece movido pelo mecanismo de recriação da memória daqueles personagens, e as possibilidades cinematográficas dessa reconstrução.
Os acontecimentos de definição dramática em Desejo e Reparação são poucos, e surgem no filme como que pinçados pelo esforço de alguém que tenta se lembrar. No primeiro momento forte, a escritorinha Briony (Saoirse Ronan; mas com o passar do tempo também Romola Garai e, ao fim, Vanessa Redgrave) presencia uma cena estranha: vê sua irmã Cecilia (Keira Knightley) mergulhar na fonte do jardim da casa e, com as roupas em encharcada transparência e o rosto sem traços de constrangimento, continuar a discutida conversa que tinha com Robbie Turner (James McAvoy) – filho da criada da família, que tem sua formação em Cambridge financiada pelo patrão. Pouco depois, a cena se repetirá, porém de um outro ponto-de-vista. Esse movimento de ruptura temporal marcará a condução do filme não só como rememoração, mas como a reconstrução de um passado pelos olhos de um narrador que, como qualquer sujeito, é parcial e não-confiável. Desejo e Reparação é, desde seus primeiros minutos, a auto-biografia que Briony gostaria de poder escrever.
Se o tamborilar das palavras digitadas situa a narrativa como decorrência da lembrança, a dupla ocorrência do mergulho é o reconhecimento, por parte desse narrador, que a compreensão dessa estória é determinada pelo ângulo de quem olha. E os olhos de Briony determinarão os caminhos de todos em Desejo e Reparação: são eles que lêem a “palavra suja” no bilhete que Robbie manda para Cecilia; que enxergam na “palavra suja” a exposição de um maníaco sexual, e que “confirmam” essa suspeita presenciando a relação sexual de Robbie e Cecilia; que, mais tarde, colocarão o rosto de Robbie no corpo do homem que estupra Lola (Juno Temple) – a prima de 15 anos de idade que se hospedava na mansão dos Tallis. É o testemunho de Briony – menina apaixonada demais pelas palavras para permitir tamanha profanação, e obcecada demais pelas amarras da ficção para admitir as pontas soltas – que levará Robbie à cadeia, à guerra, à distância de sua amada.
Não deixa de ser fascinante ver uma adaptação literária rastrear as origens de seus desastres justamente nas palavras. Fascinante, pois Joe Wright acerta, em sua recriação do romance, ao dar preferência às sugestões visuais e à estrutura, não recuando da necessidade de deixar seu plot às caras logo nos primeiros minutos. É um trabalho surpreendente justamente por se mostrar um filme-estrutura: sua narrativa é como um passeio pela escuridão do passado, e o que vemos na tela é apenas aquilo que a memória conseguiu iluminar. Nesse sentido, Desejo e Reparação impressiona ao usar a luz como sua maior ferramenta dramatúrgica. É a luz que nos diz como a Briony que se lembra enxerga a menina que inventara irreparáveis ficções: a garota que se tranca em casa, como em sua própria imaginação, e que o mundo – à janela – vem sempre estourado, fora do alcance da visão. É a luz que reflete na jóia caída ao chão, e que conduz Briony a flagrar o momento de maior intimidade entre sua irmã e o filho da criada – confirmando, para sua cabeça de escritora, as suspeitas de que ele é um maníaco sexual. É a luz da lanterna que revela o estupro, mas não o rosto do estuprador. É a luz frontal que recorta a menina no isolamento de seu testemunho, jogando o mundo em um fundo de quadro do negro mais absoluto. A luz que, mais tarde, Robbie buscará no fósforo riscado para – em cena que metaforiza todo o caminho pelo qual Wright conduz seu filme – iluminar as fotos do passado, enquanto o presente desaba sobre sua cabeça com as bombas da guerra.
A escolha de deixar que elementos de linguagem do cinema se encarreguem da narrativa é acertada, pois serve como base para construções visuais de uma riqueza raríssima. Seja na estabilidade da câmera nos trilhos que acompanha Bryoni, ou na livre sensualidade da câmera solta que dança ao redor de Cecilia – tratando o corpo com interesse próximo ao de Wong Kar-wai, Clare Denis ou Gus Van Sant – a busca por imagens em perfeita idealização reforça a ficção dentro da ficção que move o filme. No fundo, Desejo e Reparação é, como sua última parte faz questão de frisar, um exercício de wishful thinking de alguém que aprendeu que o mundo não é um só, de que tudo que ela enxerga é reflexo de si mesma. É a idéia de que a ficção – e a memória não deixa de ser um grande exercício ficcional – é o espaço onde a vida que gostaríamos de ter tido pode, de fato, se realizar. Mesmo que o curso da vida real venha se materializar na enxurrada que inunda as tubulações subterrâneas onde Cecilia se escondia, tirando sua vida. A enxurrada que faz as lâmpadas explodirem, devolvendo o corredor à escuridão, como a concretude da vida destrói a memória, a ficção. É a morte como esquecimento.
Não deixa de ser decepcionante, portanto, que Desejo e Reparação perca momentos de força em uma mínima falta de confiança, que no plano final toma uma proporção bastante incômoda. Que a sutileza do domínio de linguagem de Wright por vezes se mostre abalada pela aparente necessidade de redundância que ajuda os espectadores menos atentos. São vacilos que ferem Desejo e Reparação como os grandes filmes não costumam permitir. Por outro lado, os acertos são tantos e tão preciosos que torna difícil situar Desejo e Reparação como um filme abaixo dos grandes. No fim das contas, esse estranho limbo em que ele se inscreve não é um lugar mau para se estar.